Entre um verso e outro – poemas para os amantes de português

Decidimos celebrar a língua portuguesa fazendo uma breve antologia de autores lusófonos (ou autores de língua portuguesa). Quer aprofundar seu conhecimento literário? Confira a nossa lista abaixo.

Ilustrado por Victoria Fernandez

Um dos prazeres das línguas é a sua musicalidade, qualidade trabalhada de forma particular na poesia. Para quem está aprendendo português, ou simplesmente quer ampliar o conhecimento do próprio idioma, a poesia pode ser uma grande aliada.

Nuno Marques selecionou aqui alguns autores para você experimentar os prazeres criados pela beleza do verso.

Alexandre O’Neill (1924-1986), “Minuciosa Formiga”

O poema “Minuciosa formiga” do poeta português tem versos preciosos para quem protela, procrastina ou adia – ou seja, para quem faz da preguiça uma virtude! O poema compara a contemplativa cigarra com a atarefada formiga, com a primeira se lamentando de sua incapacidade de seguir o exemplo de quem labuta com tanto afinco. Duas palavras no poema que valem a pena explicar:

“asinha” significa “rapidamente” em português arcaico de Portugal;

“tostão” é uma antiga moeda portuguesa de muito pouco valor, semelhante ao centavo.

Ouça este poema musicado por Alain Oulman e cantado por Amália Rodrigues aqui.

Minuciosa formiga

não tem que se lhe diga:

leva a sua palhinha

asinha, asinha.

Assim devera eu ser

e não esta cigarra

que se põe a cantar

e me deita a perder.

Assim devera eu ser:

de patinhas no chão,

formiguinha ao trabalho

e ao tostão.

Assim devera eu ser

se não fora não querer.

PAULO LEMINSKI (1944 – 1989), “Verde”

Os poemas de Leminski chegam a ser tão breves que lê-los é quase como ler um recado. O poeta de Curitiba, influenciado pela poesia haikai japonesa (hai = brincadeira, gracejo e kai = harmonia, realização), chegou a escrever coisas tão imediatas e lúcidas como “não discuto/ com o destino/ o que pintar/ eu assino“. (Pintar é coloquial e significa surgir.)

Leminski também musicou poemas, sendo um deles “Verde“, interpretado por Caetano Veloso. (A palavra grama no poema seria relva em Portugal.) Confira aqui.

De repente

Me lembro do verde

Da cor verde

A mais verde que existe

A cor mais alegre

A cor mais triste

O verde que vestes

O verde que vestiste

O dia em que te vi

O dia em que me viste

De repente

Vendi meus filhos

A uma família americana

Eles têm carro

Eles têm grana

Eles têm casa

A grama é bacana

Só assim eles podem voltar

E pegar um sol em Copacabana

HILDA HILST (1930-2004), “Árias Pequenas. Para Bandolim”

Esta premiada poetisa, escritora e dramaturga é uma das mais respeitadas escritoras do Brasil. A sua obra, abordando o corpo e o desejo, promete a possibilidade de uma escrita feminina que vira do avesso e descentraliza o olhar masculino. Hilda Hilst fala da memória, da lucidez e do insano, questionando a pureza e o obsceno. Como ela escreveu em um poema: “Quem és? Perguntei ao desejo./ Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada.”

O poema aqui reproduzido representa a encruzilhada do corpo político e da memória: “Árias Pequenas. Para Bandolim“.

Antes que o mundo acabe, Túlio,

Deita-te e prova

Esse milagre do gosto

Que se fez na minha boca

Enquanto o mundo grita

Belicoso. E ao meu lado

Te fazes árabe, me faço israelita

E nos cobrimos de beijos

E de flores

Antes que o mundo se acabe

Antes que acabe em nós

Nosso desejo.

MARIA MANUELA MARGARIDO (1925-2007), “Roça”

Maria Manuela da Conceição Carvalho Margarido nasceu em São Tomé e Príncipe, onde passou a maior parte da infância, e partiu para Portugal visando continuar seus estudos. De ascendência angolana, indiana e judia, esta escritora e diplomata lutou contra o colonialismo português, sendo presa pela (hoje inexistente) PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) em 1962. Foi esta consciência política – explícita no poema “Vós que ocupais a nossa terra” – que marcou a sua obra e provocou o seu exílio em Paris, local onde a universidade e o teatro conviveram com a publicação de sua poesia. A queda do regime salazarista em Portugal, em 1974, abre portas para o seu cargo futuro de embaixadora de S. Tomé e Príncipe, função desempenhada em vários países e organizações ao longo dos anos. Ela veio a falecer em Lisboa.

Os poemas de Maria Manuela Margarido evocam o olhar dominador do colonizador, a beleza das paisagens africanas e o trabalho dos oprimidos, que anseiam pela liberdade. É precisamente este último tema que descreve em “Roça“, poema aqui reproduzido.

A noite sangra

no mato,

ferida por uma aguda lança

de cólera.

A madrugada sangra

de outro modo:

é o sino da alvorada

que desperta o terreiro.

E o feito que começa

a destinar as tarefas

para mais um dia de trabalho.

A manhã sangra ainda:

salsas a bananeira

com um machim de prata;

capinas o mato

com um machim de raiva;

abres o coco

com um machim de esperança;

cortas o cacho de andim

com um machim de certeza.

E à tarde regressas

a senzala;

a noite esculpe

os seus lábios frios

na tua pele

E sonhas na distância

uma vida mais livre,

que o teu gesto há-de realizar.

MÁRIO CESARINY (1923-2006), “Estado Segundo”

Mário Cesariny é considerado por muitos críticos como o maior representante do surrealismo português. Pintor e poeta de ascendência portuguesa, corsa e espanhola, ele também trabalhou como ourives, mas sem sucesso – profissão que seu pai dominador exercia e que desejava ver continuada pelo filho. Fracassada essa tentativa, Cesariny aproximou-se das belas artes, estudando em Paris e retornando a Portugal para fundar o Grupo Surrealista de Lisboa. Perseguido durante o regime salazarista em Portugal por causa da sua orientação sexual (Cesariny era homossexual) durante as décadas de 1960 e 1970, foi somente com a queda do regime em 1974 que as intimidações policiais cessaram.

O breve poema “Estado Segundo” parece abordar essa relação tortuosa com o governo autoritário de Salazar, desde a referência truncada no título à segunda república portuguesa – cuja definição oficial era Estado Novo – à utilização do numeral romano. Crítica ao imperialismo português ou mero jogo de palavras, Cesariny exprime um desprezo ao regime neste poema sucinto.

XX

Não houve

nunca

acima do mundo

a alegre aventura

de um sol militar

MANUEL ALEGRE (n. 1936), “Portugal em Paris”

Falar sobre Portugal é falar sobre emigração. A quantidade de portugueses (e descendentes) vivendo fora de Portugal atinge hoje os milhões. Foi esta realidade que o poeta Manuel Alegre abordou no poema “Portugal em Paris“, onde contrasta a sua existência de exilado político em Paris com a chegada de portugueses pobres na década de 1960, fugindo da miséria a que eram condenados pelo regime de Salazar. A população portuguesa rural, analfabeta, chega à França com a casa nas costas e se instala em bidonvilles, favelas frágeis de metal, madeira e tijolo nos arredores de Paris. Este poema foi censurado em Portugal na data de sua publicação, em 1967.

Solitário

por entre a gente eu vi o meu país.

Era um perfil

de sal

e abril.

Era um puro país azul e proletário.

Anónimo passava. E era Portugal

que passava por entre a gente e solitário

nas ruas de Paris.

Vi minha pátria derramada

na Gare de Austerlitz. Eram cestos

e cestos pelo chão. Pedaços

do meu país.

Restos.

Braços.

Minha pátria sem nada

sem nada

despejada nas ruas de Paris.

E o trigo?

E o mar?

Foi a terra que não te quis

ou alguém que roubou as flores de abril?

Solitário por entre a gente caminhei contigo

os olhos longe como o trigo e o mar.

Éramos cem duzentos mil?

E caminhávamos. Braços e mãos para alugar

meu Portugal nas ruas de Paris.

JOSÉ CARLOS SCHWARZ (1949-1977), “Morte Desenraizada”

Poeta e músico de Guiné-Bissau, escreveu em português e francês mas sempre cantou em crioulo. José Carlos Schwarz viu o seu país ganhar a soberania (foi a primeira colônia portuguesa na África a ver a sua independência reconhecida por Portugal), mas não chegou a presenciar a estabilidade política e econômica de sua terra natal, ainda hoje afundada em instabilidade e pobreza. Morreu jovem num acidente de avião, deixando no poema “Morte Desenraizada” (aqui reproduzido) um retrato da violência que a guerra deixou no país. Atenção para as expressões “tabanca” (“aldeia” em português europeu e “cidade” ou “povoado” em português brasileiro) e “da tua cor”, descrevendo os soldados negros guineenses que serviam as tropas militares do exército colonial português.

Segui após a marca das tuas botas

Sobre as folhas mortas em terra úmida

Ignorava qual a fera terrível que perseguias

Tal era o empenho e a atenção dos teus gestos

E vi na tabanca queimada devastada

As mesmas botas calcar o sangue, o corpo a morte inocente

De crianças da tua cor, do teu credo perdido

E soube que na terra em pranto pela tua afronta

Tu terias uma morte desenraizada.

ANA CRISTINA CÉSAR (1952-1983), “Tenho uma folha branca”

Ou Ana C., como era comumente conhecida. Poetisa (e tradutora) brasileira, publicou seus primeiros poemas na década de 1970, prosseguindo estudos universitários na Inglaterra e no Brasil. A sua carreira literária e acadêmica foi abruptamente interrompida com o seu suicídio aos 31 anos de idade. Como a própria escreveu no poema “Cartilha de Cura“, “As mulheres e as crianças são as primeiras que desistem de afundar navios”. Ana C. morreu ao saltar do sétimo andar do apartamento dos seus pais, morrendo um ano mais velha do que Sylvia Plath, uma de suas inspirações.

O poema aqui reproduzido, “Tenho uma folha branca“, é breve e exprime o espírito literário de Ana C., feito de prosa e poesia, ironia e seriedade, aforismo sofisticado e afirmação simples. Sinta os espaços sincopados entre as palavras.

Tenho uma folha branca

e limpa à minha espera:

mudo convite

tenho uma cama branca

e limpa à minha espera:

mudo convite

tenho uma vida branca

e limpa à minha espera.

NOÉMIA DE SOUSA (1926-2002), “Aforismo”

Carolina Noémia Abranches de Sousa Soares nasceu em 1926, em Catimba, nos arredores de Maputo e é considerada a mãe dos poetas moçambicanos pelo seu trabalho em apoio às gerações da independência de Moçambique. A sua obra está profundamente ancorada nesse desejo de soberania característica presente no poema “Aforismo” aqui reproduzido (um de muitos publicados também sob o pseudônimo Vera Micaia), espelhando a inviolabilidade da esperança sentida pela jornalista e poetisa. Noémia viria a falecer em Lisboa.

Havia uma formiga

compartilhando comigo o isolamento

e comendo juntos.

Estávamos iguais

com duas diferenças:

Não era interrogada

e por descuido podiam pisá-la.

Mas aos dois intencionalmente

podiam pôr-nos de rastos

mas não podiam

ajoelhar-nos.

Se gostou de algum destes poemas, escolha um e pratique o seu português, declamando-o fluidamente. A sua pronúncia melhorará e o prazer linguístico será redobrado. Boa leitura!

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