Quando o portunhol não basta…

Falar espanhol pode ser mais fácil para os falantes nativos de português, mas definitivamente não é a mesma coisa. O nosso mais novo colaborador, Denis Fracalossi, conta como foi aprender o idioma de Quixote.

Está no sangue. Brasileiro que é brasileiro parece ter uma aptidão inata para o improviso. Não à toa, Walt Disney, ao passar pelo país, chegou a criar um personagem, o papagaio Zé Carioca, conhecido justamente por sua habilidade em escapar de problemas de formas sempre criativas. E, quando o problema em questão é falar espanhol, não conheço um brasileiro que não responda imediatamente com um sorriso no rosto: “No mucho, pero sí, falo un poquito, ¿cómo no?”.

Pero no, não somos um país bilíngue. É certo que o português e o espanhol são duas línguas bastante parecidas: ambas são de origem latina e compartilham, por essa razão, muito mais semelhanças do que diferenças. Mas isso não quer dizer que, pelo simples fato de falarmos português como língua materna, sabemos automaticamente falar espanhol também. Seria o mesmo que pensar que todo alemão fala holandês de berço. O que, sim, dominamos é o portunhol — a versão linguística do jeitinho brasileiro.

Antes de seguir adiante (e, sobretudo, antes que me acusem de purista), quero fazer uma ressalva: não há nada de errado em falar portunhol. Muito pelo contrário! Qualquer esforço para se comunicar com falantes de outras línguas é sempre louvável. Até porque, quando nos expomos a situações desse tipo, costumamos aprender muita coisa. Ou seja, sou totalmente partidário do portunhol, quando essa parece ser a única saída. No entanto, existem certas ocasiões em que é preciso ir além da embromação.

Estou falando aqui, por exemplo, de certas pessoas (alguns amigos meus, inclusive) que não hesitam na hora de dar um upgrade no currículo citando conhecimentos de espanhol que nunca foram adquiridos. E não são poucos os que fazem isso! Alguns inclusive chegam a afirmar que têm nível intermediário, sem nunca ter aprendido a conjugar os verbos ser e estar (por mais que suas formas no infinitivo sejam iguais às que temos no português, a conjugação é um tanto diferente — , por exemplo, não és, mas tú eres). Situações assim podem levar a um certo embaraço (aqui com ç, que nada tem a ver com o embarazo espanhol) na hora de uma entrevista.

A professora venezuelana, Fabiola Arrechedera, já trabalhou avaliando os conhecimentos de espanhol de comissários de bordo brasileiros que pretendiam começar a voar para outros países da América Latina, e resume: “Muitos chegavam seguros de si, afirmando ter domínio do espanhol. Aí eu pedia para eles me contarem o que fizeram no fim de semana, algo bastante simples, e a resposta era quase sempre formada por palavras soltas: “Sábado playa, dormir, muy bueno“. Claro que eu podia entender o que eles queriam comunicar, mas a capacidade de formar frases é fundamental quando precisamos, de fato, falar um idioma”.

Quem decide se candidatar a uma vaga em alguma universidade em um país de língua espanhola, também precisa comprovar proficiência no idioma. Entretanto, não é difícil encontrar cursos picaretas por aí que partem do princípio de que espanhol e português são a mesma coisa e abrem mão dessa exigência como forma de angariar alunos brasileiros. Nesse caso, é o aluno que deve estar ciente do barco em que está entrando. Eu mesmo, alguns anos atrás, fui selecionado para uma pós-graduação em Madri voltada a jovens editores latino-americanos (incluindo o Brasil, que vira e mexe é deixado de lado pelos próprios brasileiros, na lista de países da América Latina) para a qual não se exigia nenhuma comprovação do domínio do espanhol. Por sorte, eu conhecia bem a língua, manjava da gramática e tal… Mas até então nunca tinha tido uma experiência de viver em espanhol.

Entender o que os professores diziam era, de longe, a parte mais fácil. Com o tempo, é inevitável se acostumar ao ritmo do idioma — e aquelas palavras que, a princípio, pareciam rápidas demais acabam se tornando supercompreensíveis. Sem falar que, durante as aulas, os professores tendem a usar uma linguagem muito mais formal, exatamente aquela que aprendemos nos livros, o que facilita bastante as coisas. Na comunicação com os demais alunos, porém, isso não acontece. Tínhamos todos mais ou menos a mesma faixa etária, por volta dos 25 anos, e estávamos ali estudando juntos, almoçando juntos, morando juntos… como se fosse em um reality show. E é óbvio que, com a convivência, as conversas iniciais, mais genéricas, em que falávamos sobre nosso país de origem e nosso trabalho, foram dando lugar a diálogos muito mais interessantes e complexos. Um verdadeiro aprendizado — em todos os sentidos!

Denis e algumas colegas da universidade.
Denis e algumas colegas da universidade em Madri.

Além disso, o fato de as pessoas serem de tantos países diferentes era também um desafio linguístico. Afinal, mais do que os diversos sotaques e pronúncias, as palavras variam bastante de país para país (para citar um exemplo, o que é camiseta no Brasil e na Espanha é playera no México, polera no Chile e remera na Argentina) e a gramática também sofre uma alteração ou outra, como no caso das conjugações verbais decorrentes do voseo (o uso do pronome vos em vez do , comum em vários lugares da América Latina), que fogem do padrão da língua. Nesse sentido, ter conhecimentos um pouco mais sólidos do idioma é imprescindível para evitar que tantas variações se tornem um obstáculo à compreensão.

Outro problema que pessoas que se limitam ao portunhol costumam enfrentar quando estão de passagem por algum país de língua hispânica é conseguir entender o cardápio dos restaurantes. Isso acontece porque vários legumes, frutas e temperos têm nomes bastante diferentes daqueles que usamos em português. Aliás, se dentro do próprio Brasil a macaxeira pode ser mandioca ou aipim dependendo da região, como esperar que palavras assim continuem tendo a mesma raiz (com o perdão do trocadilho) em espanhol? Adivinhar, por exemplo, o que é naranja, cebolla e pimienta não exige lá muitos neurônios… Mas, na hora em que a fome apertar, seria melhor pedir um prato de fideos de remolacha con garbanzos y calamares ou uma macedonia de melocotón, ciruela, piña, fresas y sandía?

De toda forma, como todos sabemos, no sólo de pan vive el hombre. Mais do que para evitar mal-entendidos na hora de comer, aprender espanhol vale a pena também por todo o universo cultural que passa a estar ao nosso alcance a partir do momento em que abraçamos o idioma: poderemos ver os filmes do Almodóvar e do Carlos Sorín sem precisar de legendas, ler os livros do García Márquez e do Roberto Bolaño no original, cantar Shakira ou Ricky Martin no karaokê sem passar vergonha (bom, pelo menos do ponto de vista linguístico)… E isso tudo sem mencionar que, quando estudamos espanhol, passamos a entender muito melhor o português — e, inclusive, descobrimos palavras que às vezes nem sabíamos que existiam também na nossa língua. Será que com todas essas vantagens não valeria a pena aposentar o velho jeitinho brasileiro e encarar o desafio de aprender español de verdad?

ilustração por Denis Fracalossi

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Denis Fracalossi

Denis Fracalossi nasceu em São Paulo e se formou em editoração pela ECA-USP. Após passar por diversas editoras e agências de publicidade, estabeleceu-se como tradutor, atividade em que pode exercitar sua paixão por idiomas. Essa mesma paixão, combinada com seu interesse por viagens e sociedades, o levou a deixar o Brasil em 2012 e se aventurar por novas paragens. Atualmente, reside na Alemanha, onde se tornou mestre em edições pela Freie Universität de Berlim.

Denis Fracalossi nasceu em São Paulo e se formou em editoração pela ECA-USP. Após passar por diversas editoras e agências de publicidade, estabeleceu-se como tradutor, atividade em que pode exercitar sua paixão por idiomas. Essa mesma paixão, combinada com seu interesse por viagens e sociedades, o levou a deixar o Brasil em 2012 e se aventurar por novas paragens. Atualmente, reside na Alemanha, onde se tornou mestre em edições pela Freie Universität de Berlim.