Seu cérebro funciona de maneira diferente dependendo da sua língua materna? Mais ou menos

O idioma não é um fator limitador para a cognição. Mas tudo indica que seja capaz de favorecer padrões mentais que funcionam como uma espécie de “filtro” para enxergar o mundo – dessa forma, falar vários idiomas pode ser uma maneira de ganhar “superpoderes”.

Ilustrado por Elena Lombardi

No Alasca, no Marrocos, nos Montes Urais ou na Nova Zelândia, seres humanos são seres humanos, com as mesmas capacidades cognitivas e os mesmos sentidos, com os quais são capazes de perceber o mundo de maneira idêntica: olfato, audição, visão, tato e paladar. Certo?

Não é o que diz o determinismo linguístico, ou a hipótese Sapir-Whorf, proposta por estudiosos no começo do século XX. Para essa linha da Linguística, o idioma – que é a maneira com a qual exercitamos nossa cognição e pensamos – tem o poder de mudar objetivamente como percebemos a realidade. Ou seja: não há realidade objetiva, mas percepções diferentes de acordo com a língua que você fala.

Essa hipótese já foi desbancada há muitos anos, por falta de evidência objetiva. Hoje, há uma linha de linguistas que acredita numa versão “light” dela: que nossa língua não limita como vemos o mundo, mas funciona como um filtro.

O idioma como um cabresto

Se você assistiu ao filme A Chegada (The Arrival), de 2016, vai se lembrar que essa ideia é o fio condutor do que acontece no final do filme (e se não o viu, pule para o próximo parágrafo para evitar spoilers). Nele, a linguista Louise Banks é convocada para conseguir se comunicar com uma espécie de aliens que pousou no planeta. Ao aprender o idioma, ela ganha um “superpoder”: a capacidade de enxergar o futuro, o passado e o presente, tudo ao mesmo tempo. No filme, a explicação é que os visitantes enxergam o tempo dessa maneira e não “linearmente”, como nós. Isso se deve ao seu idioma, que também não exibe palavras, conceitos e noções de tempo de maneira linear.

O roteiro de A Chegada é uma grande licença poética. Para muitos, a inspiração é claramente a observação feita por Benjamin Whorf quando, nos anos 1940, propôs a hipótese Sapir-Whorf. Ele sugeriu, após estudos, que a tribo nativo-americana Hopi, por não ter palavras para “antes” ou “depois”, vivia e enxergava as noções de tempo e passado de maneira diferente dos falantes de idiomas indo-europeus.

A hipótese de Whorf gerou polêmica e debates no mundo linguístico, e deu origem a outras teorias ainda mais mirabolantes. No entanto, foi perdendo força na medida em que constatava-se o óbvio: não é necessário um verbo no futuro e palavras que impõem uma linearidade de tempo para que uma pessoa seja capaz de perceber o tempo. A maioria dos idiomas do mundo não tem a palavra “saudade”, e isso não significa que apenas os falantes de português sintam saudade. É um sentimento que todo ser humano sente e é capaz de compreender, fale português ou não.

Idiomas, hábitos e padrões mentais

Quase 80 anos depois, é quase um consenso que a teoria de Whorf cometeu uma série de erros ao afirmar que a língua materna tem a capacidade de “limitar” o cérebro. Hoje, no entanto, ela deu origem a uma outra linha de pensamento, menos determinista: não é que a língua determine o que vamos ver no mundo ou não. Mas as estruturas gramaticais e sintáticas de um idioma, junto com seu vocabulário habitual, se comportariam muito mais como diferentes óculos que a gente usa para enxergar o mundo.

Por exemplo: alguns idiomas, como o inglês, não determinam gênero para alguns substantivos, como “friend“. Se você disser a alguém “Yesterday, I met a very good friend and we went out for dinner“(Ontem, eu encontrei um bom amigo/uma boa amiga e fomos jantar), o receptor da mensagem não saberá se esse é um amigo ou uma amiga. Em português, em francês, em italiano, em alemão e em outras dezenas de idiomas, o gênero do amigo em questão fica claro de cara.

Você, como interlocutor, automaticamente informa o gênero do(a) amigo(a) quando comunica que saiu para jantar ontem, enquanto alguém fazendo o mesmo comunicado em inglês ignora essa informação. De acordo com uma das linhas de estudo da Linguística, isso gera hábitos mentais que forçam você a se atentar a detalhes de como o mundo funciona que são diferentes dos detalhes de falantes de outros idiomas. E isso, alega-se, afeta de alguma maneira nossas experiências, percepções, memórias, conexões e como “navegamos” pelo mundo.

Em idiomas em que objetos inanimados têm gênero – em português, uma “mesa” é sempre um substantivo do gênero feminino, enquanto que em inglês os objetos não têm gênero – certos estudos indicam que os falantes daquele idioma atribuem, inconscientemente, características associadas à masculinidade a substantivos masculinos, e características associadas à feminilidade a substantivos femininos.

Não existe um estudo que determine as implicações práticas desse hábito. Mas é um hábito que claramente demonstra um filtro diferente enxergando o mundo, cujos impactos podem afetar uma série de padrões mentais e percepções sociais. Na mesma linha: um estudo identificou que falantes de japonês tem mais propensão do que falantes de outros idiomas a agruparem objetos pelo material do qual são feitos, e não pela forma que têm. Esse outro estudo indica que falantes de russo distinguem tons de azul com mais facilidade do que falantes de inglês.

E para quem é bilíngue?

A lógica parece óbvia: se uma língua é um óculos para enxergar o mundo, falar duas línguas pode ser uma maneira de sobrepor diferentes óculos… e até conseguir tirar os seus óculos de “nascença” com mais facilidade? Talvez.

Os estudos nessa linha indicam, sim, que bilíngues exibem características dos hábitos mentais de todos idiomas que falam – e não só enquanto estão falando o outro idioma, mas o tempo todo. É como se seu “óculos” de ver o mundo ganhasse outras camadas.
Ainda que esses sejam estudos preliminares, há muitas evidências de que falar vários idiomas amplia sua visão de mundo. Ser poliglota pode ser nossa maneira mais acessível de ganhar superpoderes.

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