Ilustrado por Mateo Correal
Hacete unos mates
Para muitas pessoas lá fora, o mate é um mistério. Uma busca no Google mostra resultados como: “O que é isso que os argentinos comem, como um pasto molhado em uma tigela?”, “O mate é uma substância alucinógena?”. O mate é uma infusão amarga feita com folhas de erva mate que se consome em vários países da América do Sul, inclusive o Brasil, mas na Argentina é mais que uma bebida: é um ritual compartilhado. Neste ponto, tenho que declarar que sou uma herege porque não tomo mate (nunca adquiri o costume), portanto, não sou profunda conhecedora do tema. O mate normalmente se toma em grupo: uma pessoa o prepara com muita arte e o passa para os outros. O mate também une viajantes, cada vez que cruzo com um(a) argentino(a) pelo mundo, recebo a mesma proposta: vamos tomar um mate? E antes que eu possa responder, começam a me contar como quase confiscaram a erva em algum aeroporto asiático pensando que era droga, ou que outro argentino deu a erva de presente antes de voltar para casa, ou ainda me mostram com simplicidade e orgulho o kit de mate que carregam na mochila.
Traje facturas
Na Argentina, se come facturas. E não me refiro às contas de gás ou internet, mas sim as massas doces que nunca faltam no café -da-manhã ou no lanche. Café com leite e medialunas é uma combinação clássica. Alguns confundem as medialunas com uma imitação de croissant, mas não tem nada a ver: o croissant é salgado e areado, a medialuna é doce, compacta e perfeita. Como pessoas que consomem medialunas compulsivamente, sabemos detectar quando elas estão frescas e quentinhas ou quando estão secas ou de ontem. As medialunas não são as únicas facturas: também tem vigilantes, cañoncitos, suspiros de monja, sacramentos, bolas de fraile… Todas batizadas com esses nomes por um grupo de padeiros anarquistas que, como protesto, decidiram burlar diferentes instituições como a polícia, o exército e a igreja por meio dos nomes de seus produtos.
El dulce de leche es sagrado
Em seguida, o doce de leite (na Argentina somos dos doces): ele é orgulho nacional. Há quem diga que é muito enjoativo ou muito açucarado, e eu digo que não entendem nada. Em dez anos de viagens, não encontrei nada igual (não, nem o caramelo francês). O doce de leite vai bem com tudo: com pão, com facturas (existem facturas que já vem cheias de doce de leite), com bolachinhas, com banana, com brownie, com bolo de aniversário (bolo de aniversário não é um bolo se não tem doce de leite). O sorvete de doce de leite granulado é um clássico (o sorvete em si merece um artigo à parte) e existem sorveterias que ficaram famosas por fazer “o melhor sorvete de doce de leite do bairro”. E o doce de leite é o ingrediente fundamental em um dos nossos produtos gastronômicos preferidos: o alfajor.
Este finde hay asado en casa
Nossa gastronomia não é uma das mais variadas, mas nós adoramos comer e, sobretudo, comer com outras pessoas. Assim como o mate é mais que uma infusão, o asado é mais que uma maneira de assar a carne: é uma atividade social. Um asado se organiza com antecipação, as tarefas se dividem e todas as pessoas colaboram com algo: preparar as saladas, comprar a carne, trazer as bebidas e o gelo, fazer o fogo, preparar a picada (o que se come antes de se salgar a carne, em geral queijo, amendoim e azeitonas), colocar a música, trazer as sobremesas. O asador fica a cargo da grelha. A primeira coisa que geralmente sai da grelha são os choris, e as batatas na brasa ficam para o final. Enquanto isso, nesse meio tempo, da grelha, podem sair hambúrgueres, bifes, frango, costela, embora o asado normalmente seja de carne bovina. Quando os pratos estão vazios, o asado não termina: aí começa a sobremesa, e as pessoas ficam na mesa conversando sobre vida por um longo tempo.
Dame otro Fernet con coca
Em cada país normalmente se tem uma bebida ou comida típica que oficializa a “prova de fogo” ou “rito de passagem” para qualquer pessoa que venha do exterior: na Argentina, é o fernet, uma bebida alcoólica a base de ervas, com 40% de álcool, criada na Itália originalmente como um digestivo. O fernet chegou à Argentina no século XIX e hoje consumimos mais de 3/4 da produção mundial, mas com um toque local: o fernet se toma com muito – muito – gelo e Coca-Cola (nada de Pepsi ou Coca Light). Os estrangeiros dizem que conhecem o xarope, que é muito amargo. Alguns atrevidos dizem que é asqueroso. É certo que para quem se apaixona pelo fernet não tem como voltar atrás: meu marido é francês e, em cada lugar do mundo que visitamos, procuramos desesperados garrafas de Fernet nas prateleiras dos supermercados.
Boludo
Esta deve ser uma das palavras mais ditas per capita, e mesmo assim é difícil dar uma definição exata de boludo. Literalmente, faz referência ao tamanho dos genitais masculinos, e o dicionário diz que se usa para expressar que alguém é tonto. Mas, para nós, não é um insulto (embora possa ser, segundo o tom com que é dito e o contexto em que se usa). Nós dizemos boludo ou boluda entre amigos(as) (boluda, no sabés lo que me pasó), dizemos “no seas boludo(a)” para animar alguém que não quer fazer algo, ou dizemos a alguém que “deixe de fazer boludeces” para pedir que deixe de tontices, ou “dale, no me boludees” se usa para pedir a outra pessoa que nos levem a sério ou não nos engane. Se dissermos que algo é “una boludez“, quer dizer que parece fácil, e se alguém “se faz de boludo” é porque não está entendendo a situação. E se bem que às vezes usamos “sos un boludo” como um insulto, expressão que está alguns níveis abaixo de pelotudo, o que literalmente significa o mesmo, mas tem uma conotação mais forte.
En pedo / de pedo / al pedo / a los pedos
A palavra pedo é multiuso literalmente, um pedo é… como dizer… um gás corporal, mas seu significado muda de acordo com o artigo na frente da palavra. Então, estar en pedo é estar bêbado(a) (se a bebedeira é muito forte, se tem “un pedo de colores“), embora também é uma maneira de dizer que alguém está louco(a) (“¡estás en pedo, eso no es así!”). Fazer ou ganhar algo de pedo é por uma causalidade ou sorte (“llegué a tiempo de pedo, porque había mucho tráfico”), estar al pedo é estar sem fazer nada (“hoy no trabajo, estoy al pedo”), mas também pode-se usar pra se referir a algo que é inútil (“es al pedo que le pidas eso, no lo va a hacer”). Ir a los pedos é ir muito rápido (“esa moto va a los pedos” ou “estás yendo a los pedos, no te entiendo nada”), dizer que não vai fazer algo ni en pedo é que não faria nem louco(a), e finalmente, tirarse un pedo é expulsar um gás, ou seja, peidar.
Qué quilombo
A palavra quilombo vem do lunfardo e significa, literalmente, bordel. O que é lunfardo? Um dialeto popular que surgiu em Buenos Aires e seus arredores durante a segunda metade do século XIX. Muitas expressões chegaram com os imigrantes europeus, especialmente os italianos, e foram popularizadas pelo tango e outros gêneros musicais. Muitas das palavras que usamos hoje na Argentina vêm do lunfardo, e quilombo é uma delas. Para nós, um quilombo é uma bagunça ou algo complicado. “Isso é um quilombo” ou “o que é este quilombo?” também pode fazer referência a desordem de um lugar ou de uma situação. Se pedirmos a alguém que “no nos meta en quilombos“, é porque não queremos confusão. E se queremos, dizemos “al vesre“, dizemos “qué bolonqui“.
Che
Che deve ser outra palavra que mais dizemos e a que mais nos representa fora da Argentina, embora se use em vários países e tenha uma origem díficil de definir. O che se usa em Valência (Espanha) faz muitos séculos, na Itália (acredita-se que assim foi que chegou ao nosso país) e inclusive nas comunidades indígenas do Norte da Argentina (em guarani, che significa eu). Na Argentina, usamos che informalmente como interjeição, para chamar a atenção de alguém em quem confiamos (che, mira eso), para falar com pessoas que estão presentes (che, no saben lo que me pasó), para dar uma ordem (dale, che, vení), para substituir o nome de um amigo (che, ¿te conté lo que dijeron?) e, as vezes, até para preencher silêncios em uma conversa (pero, che, ¡qué cosa bárbara!).
Te mando un beso
As pessoas na Argentina são muito beijoqueiras. Nós damos um beijo na bochecha ao cumprimentar quase todo mundo. As mulheres beijam mulheres e homens, os homens também se beijam, todos nós nos beijamos ao nos cumprimentarmos. Terminamos as chamadas telefônicas, chats ou e-mails com “um beijo” (exceto se tivermos que ser formais e, neste caso, escrevemos “cumprimentos”). Alguns estrangeiros que vêm de países onde o cumprimento é mais distante se sentem um pouco intimidados com tanta proximidade. Os argentinos não só se beijam, também se abraçam e dizem “te amo” (não só entre casais, mas também entre amigos).
A amizade para nós é tão importante quanto a família, e aproveitamos cada momento para expressá-la. Essa é uma das coisas de que mais gosto e mais sinto falta quando não estou na Argentina (sim, inclusive mais que doce de leite).