Como quase todo brasileiro, com exceção talvez daqueles nascidos e criados em regiões fronteiriças, eu nunca me senti conectada com os outros povos da América Latina. A verdade é que a formação cultural e histórica do brasileiro médio se distancia bastante daquela dos países que nos rodeiam – e, assim, fica difícil construir essa ligação e se sentir parte de uma identidade cultural única, ainda que rica e diversa.
Para quem não é brasileiro, explico. No geral, a cultura hispânica da América Latina dificilmente ganha tração entre o público daqui. No Brasil, as músicas, os filmes e os artistas da América Hispânica que se tornam famosos são aqueles que passam pelo crivo da audiência norte-americana. Se funciona lá, aí a gente consome: dificilmente essas obras fazem o caminho direto até nós.
É verdade, nosso país é enorme e tem produção cultural diversa e volumosa o suficiente para que seja fácil esquecer o que nos rodeia. Mas, se é assim, por que as cultura norte-americana e inglesa são tão consumidas, em detrimento daquelas que estão muito mais perto de nós, geográfica e conceitualmente?
A YouTuber Joana Haussmann, norte-americana de origem venezuelana que aborda com humor temas associados à cultura latina em seu canal, chegou a fazer um vídeo cujo título é “Are Brazilians latino?”. Ou seja, estamos tão apartados que abrimos espaço pra esse tipo de pergunta.
A reconexão
Ilustrado por Guilherme Maueler
A minha autodescoberta e minha identificação como latina aconteceram primeiro em uma viagem a trabalho, a Barcelona, dez anos atrás. Eu tinha 20 anos e me frustrei por entender tudo e não conseguir falar nada. Tive vergonha de, por tanto tempo, ter ignorado uma língua tão próxima, uma cultura tão rica, que diz tanto sobre a formação cultural e social do meu povo.
Decidi aprender a falar espanhol de verdade. Meus contatos com a língua na infância e adolescência se limitaram ao vício da minha mãe por discos da Shakira e do Roxette em espanhol e às aulas do ensino médio. Somei isso a uma vivência curta em Buenos Aires, uma mais longa na Cidade do Panamá e uma abdicação da vergonha de falar o pouco que sabia.
Aprender espanhol para quem é nativo de português é fácil (sério!). Primeiro, é preciso acostumar os ouvidos à sonoridade, aos equivalentes fonéticos e gramaticais. Depois, tente imitar. Com as correções que vão vir dos nativos ou do professor, você aprende o jeito certo, elimina os falsos cognatos e aperfeiçoa o sotaque. Ou seja, enquanto me comunicava de maneira errada, exercitando meu portunhol, fui sendo corrigida, escutando palavras novas e enfim aprendi a falar a língua de Cervantes e García Marquez.
O aprendizado do espanhol me aproximou das raízes latinas que nós, brasileiros, deixamos convenientemente sufocadas. Comecei a descobrir as riquezas culturais e a ter vontade de visitar os países hispânicos da América Latina: estive na Colômbia, no Peru, no Chile, no Uruguai e na Argentina. Descobri os grandes autores espanhóis, li clássicos do realismo fantástico e da poesia e fui apresentada a um mundo incrível, familiar e surpreendente ao mesmo tempo. É como descobrir, depois de adulto, que você tem um tio desconhecido que se parece muito com você – e cujos hábitos, maneirismos e aparência explicam muito daquilo que você é.
Como me aproximei da identidade latina por meio da língua espanhola
Para mim, o aprendizado da língua espanhola é o caminho mais curto e prazeroso em direção a essa redescoberta. É esse o primeiro passo em direção à vontade de visitar esses países, conversar com as pessoas e descobrir como nossas semelhanças e nossas diferenças nos fazem tão parecidos.
Aprendendo espanhol, descobrimos curiosos falsos cognatos, como propina, apellido, alejar e borracho, e nos apaixonamos por etimologia, pelos processos linguísticos que deram significados tão distintos a palavras idênticas. Exploramos expressões idiomáticas que são comuns às duas línguas – como costar el ojo de la cara, a duras penas e perder los estribos – e que, mesmo depois de tantas mudanças na formação étnica e geográfica do continente latino-americano, seguem significando a mesma coisa nas duas línguas. Toda essa dicotomia entre semelhanças e diferenças nos lembra o tempo todo das coisas que nós, brasileiros e latinos-hispânicos, dividimos culturalmente.
É triste que o isolamento cultural brasileiro impeça muitos de nós de perceber que temos todos as mesmas origens, mas que em algum momento o Brasil se definiu como algo a parte. E resgatar essa ligação é um exercício rico de humanidade, de entendimento sobre a futilidade e a arbitrariedade das fronteiras geográficas e de compreensão sobre a semelhança das nossas condições. A América Latina toda divide os mesmos dramas sociais, as mesmas heranças boas e ruins da exploração europeia, as mesmas etnias – todo mundo tem um pouco de nativo misturado a alguma etnia europeia, embora cada país lide com isso de forma diferente (e isso também é um aprendizado).
Essa reconexão, acima de tudo, tem um superpoder: o de gerar um sentimento de pertencimento, de partilha das mesmas origens, de empatia com os problemas e as alegrias da população de todo um continente. Sem falar que ela nos torna mais fortes, culturalmente mais diversos e mais tolerantes.