Ilustrado por Jana Walczyk
A ortografia inglesa é, para muitas pessoas, osso duro de roer. A primeira vez em que o meu professor de inglês escreveu through na lousa, eu tive de memorizar a fonética da palavra e aí aprender como pronunciá-la corretamente. Logo, eu estava lidando com homófonos como seen/scene, hear/here e homonimos como lead/lead ou present/present.
Por que a ortografia inglesa enlouquece muita gente com sua inconsistência e estranheza?
Raízes germânicas
Talvez a ortografia desse idioma seja tão confusa por causa de sua história, que é igualmente conturbada. Se dermos uma rápida olhada na história inglesa, ela vai nos mostrar a recorrente colonização, ocupação e visitação das ilhas britânicas por um vasto número de povos e culturas ao longo dos séculos.
Durante a época do Império Romano, os povos germânicos, que falavam vários dialetos ocidentais germânicos, se estabeleceram nessas ilhas. Esses dialetos acabaram dando origem ao anglo-saxão, também conhecido por inglês antigo.
Uma influência cristã vinda de Roma
Já no fim do século VII, os missionários cristãos chegaram trazendo com eles o latim e o cristianismo. Por volta do século IX, o sistema de escrita mudou com a introdução do alfabeto do inglês antigo e do latim. Mas, a língua falada pelos anglo-saxões incluía sons que não estavam presentes no latim. Por isso, a partir deste momento ocorreu a inclusão de letras únicas, como Þ (que mais tarde se tornou th), e a necessidade de agrupar letras latinas para representar sons falados pelos habitantes, como gh. (“Mas nós não pronunciamos o gh na maioria das palavras em inglês”, você pensou. Mais sobre isso a seguir…)
A invasão norueguesa
No fim do século VII, as ilhas inglesas se defendiam de outra invasão. Os vikings chegaram saqueando as comunidades cristãs e os monastérios, deixando para trás caos… e algumas palavras.
Muitas palavras começando com th têm origem na língua nórdica antiga – como thrust,thrift, they, there e then – assim como muitas palavras começando com sk – como skirt, sky, skill e skin. Os vikings ajudaram a simplificar as línguas faladas nos territórios por onde passaram, “polindo” a gramática e trazendo clareza para a língua falada pelos anglo-saxões.
A conquista normanda
Uma nova mudança, no entanto, estava prestes a ocorrer de novo no século XI, à medida que Guilherme, o conquistador, chega e muda a língua da elite para o anglo-normando, um dialeto setentrional do francês antigo.
Jury, clerk,* justice* são apenas algumas das dez mil palavras que foram inseridas na língua até o século XIV. Parliament foi outra – afinal, parler é o verbo francês para “falar”, e parliament é onde os políticos falam. Centre também foi mantida na sua versão ortográfica original – embora os americanos mudassem muito depois para center – junto com colour – que eles acabaram mudando para color.
Palavras mutantes
Enquanto isso, a Grande Mudança Vocálica estava acontecendo mais ou menos entre 1350 e 1700. Palavras como bite, meet, out e boot mudaram foneticamente em um intervalo de 350 anos, e adquiriram um som bem diferente. Por exemplo, name no inglês medieval soava como naam (naːm), muito mais parecido com a pronúncia de Name no alemão contemporâneo. Porém, foi só por volta de 1850 que o inglês começou a aproximar-se da pronúncia contemporânea (neɪm).
Outros sons também desapareceram ou mudaram. Se nós investigarmos palavras escritas com -ough, veremos que possuíam o mesmo som que as palavras alemãs Bach ou Loch. O ditongo gh na palavra light também era pronunciado assim. Mas no século XVII, o som tinha ou sido deixado de lado, ou mudado para um f. Hoje percebemos que, apesar de palavras como through, rough,* cough*, thought e bough terem diferentes pronúncias, a ortografia gh permaneceu.
Outras letras eram também pronunciadas, como k em knight. Mas o som se perdeu, assim como wrong perdeu seu audível w.
E então a imprensa bagunça muito tudo
Até agora nos referimos, na maior parte, a uma tradição oral. No entanto, com a invenção da prensa, a ortografia de muitas palavras solidificou enquanto sua pronúncia continuou a mudar. Como resultado, nós herdamos as confusas particularidades de cada dialeto anterior e sua mudança cultural.
Não apenas isso. William Caxton trouxe a prensa para a Inglaterra – junto com os tipógrafos estrangeiros. Trabalhadores holandeses, que não conheciam a ortografia inglesa, escolheram a holandesa para escrever, transformando gost em ghost, yott em yatch e adicionando um ocasional e no fim de algumas palavras para preencher um espaço em branco ou ganhar mais (não se esqueça que eles eram pagos por linha). Muitas edições da Bíblia traduzidas nesta época para o inglês foram impressas no continente por trabalhadores que também não falavam inglês. Nem é preciso dizer que os próximos 100 anos incluíriam uma avalanche de diferenças ortográficas.
O latim se recusa a morrer
Para piorar, mais ou menos entre 10 e 12 mil palavras passaram a integrar a língua inglesa durante a Renascença, muitas com origem no latim. A influência do latim permaneceu tão grande, que a ortografia de palavras como debt mudaram para incluir o b mudo – refletindo sua origem latina (debitum). Receit se tornou receipt, espelhando o *recepere do latim. O mesmo aconteceu com island, mas por razões diferentes, já que ela originalmente vem do inglês antigo īegland apesar de terem pensado que sua origem era do latim insula (a partir do Francês Antigo isle). Portanto, island ganhou um s por acidente!
O período em que nós começamos a reconhecer algo semelhante ao inglês contemporâneo é por volta da época de Shakespeare. E Shakespeare não só criou diversos termos novos, como também em seu epitáfio incluiu a ortografia de frend em detrimento da variante friend. Tal simplicidade, no entanto, não sobreviveu aos tempos.
O desenvolvimento da ciência traz o grego para o jogo
O século XVIII deu as boas-vindas à era industrial e impulsionou inúmeros avanços tecnológicos, incluindo a revolução científica. Para nomear muitas dessas criações e descobertas, o latim e o grego antigo eram usados e adicionados ao idioma falado. Telephone (uma palavra criada no século XIX) é um bom exemplo. A ortografia intelectual reflete sua etimologia nobre grega. Em contraste, palavras rasas como fly ou furious não são escritas com ph. Por que não? Afinal, uma palavra como fantasy também vem do grego – e nós terminamos escrevendo-a com um f! Viu como são inconsistentes essas escolhas?
O debate corrente (e potencialmente eterno)
A abordagem de palavras emprestadas também mudou por volta do século XIX. Antes, uma palavra como Nudel do alemão iria integrar o inglês como noodle. Mas logo depois, palavras como pizza ou Strudel mantiveram sua ortografia original.
A mudança continua até hoje com a presença de termos ténicos, jargões e nomes de produtos revolucionando a língua. Seja donut ou doughnut, barbecue ou barqueque, o inglês continua enlouquecendo quem aprende esse idioma fascinante.