Ilustrado por Ginnie Hsu
Enquanto dirigia para Acapulco com a família, em 1965, o jornalista colombiano Gabriel García Márquez decidiu interromper a viagem de férias e retornar para a Cidade do México, onde vivia. Ele havia acabado de ter uma ideia para o início de um livro. Nasceria, 18 meses depois, Cem anos de solidão, uma das obras de Gabriel García Márquez mais famosa e um marco do realismo mágico.
Publicado em 1967, Cem anos de solidão lançou García Márquez ao estrelato, vendendo mais de 45 milhões de exemplares em todo mundo desde então. O livro redefiniu a literatura latino-americana e inspirou autores, como Salman Rushdie e Toni Morrison.
Considerada uma espécie de Don Quixote do sul global, a obra ajudou o colombiano a ser condecorado com o Prêmio Nobel de Literatura de 1982. Mas, apesar do sucesso imediato em países hispânicos, o livro demorou três anos para ter uma versão em inglês.
Cem anos de solidão conta a trajetória de sete gerações da família Buendía na cidade fictícia de Macondo. A história mescla acontecimentos do mundo real na Colômbia com elementos sobrenaturais e mágicos, como virgens flutuantes e reencarnações, tratados de maneira realista.
Por exemplo, Márquez reconta um massacre cometido por influência de uma empresa de frutas norte-americana contra milhares de trabalhadores em greve. Essa é uma referência a The United Fruit Company e a um fato real de 1929, conhecido como o “Massacre das Bananeiras”.
Em meio à fantasia, há também críticas à política, à guerra, à exploração do capitalismo e ao colonialismo na América Latina.
Cem anos de solidão era tão grande que Mercedes, a esposa de García Márquez, precisou penhorar um secador de cabelos e um aquecedor elétrico para pagar o envio pelos Correios do material à editora.
A vida de um jornalista
García Márquez nasceu em 1927 na pequena cidade de Aracataca, no norte da Colômbia. Era o mais velho dos 11 filhos de um operador de telégrafo e da filha de um coronel.
Quando seus pais mudaram de cidade em busca de emprego, Gabo (seu apelido) ficou para trás com os avós maternos: Nicolás Márquez (um veterano da Guerra dos Mil Dias) e Tranquilina Iguarán Cotes de Márquez.
Durante a sua infância, Gabo ouviu do avô histórias sobre duelos fatais e guerra civis colombianas do século XIX. Da avó, absorveu conhecimentos de superstições e do sobrenatural. E esses elementos familiares tornaram-se parte relevante de sua obra.
Após a morte de Nicolás Márquez, Gabo mudou-se para Barranquilla. Chegou a cursar Direito, mas aos 20 anos abandonou a faculdade para trabalhar como jornalista. Naquela época, já publicara pequenos contos no jornal El Universal.
A escolha pela escrita rendeu frutos, e Gabo tornou-se um jornalista com uma carreira estável. O colombiano foi correspondente em Paris nos anos 1950, ocupando, em 1961, o mesmo posto em Nova Iorque, na Prensa Latina, agência de notícias fundada pelo governo comunista cubano. Passou ainda por Havana, onde mantinha laços com Fidel Castro, e por Bogotá.
Nos anos 1960, mudou-se para a Cidade do México. Após a fama, entre 1967 e 1975, viveu na Espanha, antes de retornar ao México. Além dos romances, Gabo seguiu atuando como jornalista mesmo quando passava dos 70 anos.
A morte do colombiano, aos 87 anos, na Cidade do México, em 2014, foi lamentada por diversos chefes de Estado. O então presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, chamou o autor de “o maior colombiano de todos os tempos”. Bill Clinton, ex-presidente dos Estados Unidos e amigo do escritor, exaltou seu “grande coração e mente brilhante”.
Reconhecimento
No anúncio do prêmio Nobel de 1982, a Academia Sueca destacou que o sucesso de Cem anos de solidão “poderia ser fatal para um escritor com menos recursos que aqueles possuídos por García Márquez”. O colombiano, no entanto, “confirmou sua posição como um raro contador de histórias, ricamente dotado de um material da imaginação e da experiência que parece inesgotável”.
Gabo foi definido como versátil e dono de um “quase esmagador talento narrativo”. “Como a maioria dos outros escritores importantes no mundo latino-americano, García Márquez é fortemente comprometido, politicamente, do lado dos pobres e dos fracos contra a opressão interna e a exploração econômica estrangeira”, afirmou a Academia.
Ao receber o prêmio, García Márquez apresentou um discurso entitulado A solidão da América Latina, no qual narra as tragédias de uma região marcada por ditadores brutais, guerras sangrentas, golpes de Estado, tortura, assassinatos, pobreza e exploração colonial. Abaixo, um dos trecho mais marcantes:
Houve cinco guerras e dezessete golpes militares [desde 1971] ; emergiu um ditador diabólico que está realizando, em nome de Deus, o primeiro etnocídio latino-americano do nosso tempo. Enquanto isso, 20 milhões de crianças latino-americanas morreram antes de completarem um ano – mais do que nasceram na Europa desde 1970. Os desaparecidos por causa da repressão somam 120 mil, o que é como se ninguém soubesse onde foram parar os habitantes de Uppsala. Inúmeras mulheres presas durante a gravidez deram à luz em prisões argentinas, mas ninguém sabe o paradeiro e a identidade de seus filhos que foram furtivamente adotados ou enviados a orfanatos por ordem das autoridades militares […] Um milhão de pessoas fugiram do Chile, um país com uma tradição de hospitalidade – isto é, 10% de sua população. O Uruguai, uma minúscula nação de 2,5 milhões habitantes que se considerava o país mais civilizado do continente, perdeu para o exílio 1 em cada 5 cidadãos. Desde 1979, a guerra civil em El Salvador produziu quase um refugiado a cada 20 minutos. O país que poderia ser formado por todos os exilados e emigrantes forçados da América Latina teria uma população maior que a da Noruega. Eu me atrevo a pensar que é essa realidade descomunal, e não apenas sua expressão literária, que mereceu a atenção da Academia Sueca de Letras.
Obras de Gabriel García Márquez
Ao longo de sua carreira, Gabo publicou mais de 20 livros que foram traduzidos para ao menos 30 idiomas. Entre seus trabalhos mais famosos estão Amor em tempos de cólera (1981), Crônica de uma morte anunciada (1981), O general em seu labirinto (1984), e Memória de minhas putas tristes (2004).
As histórias do jornalista colombiano muitas vezes giravam em torno da morte. Conforme a Academia Sueca destacou há 36 anos, esse sentido da “superioridade incorruptível do destino” caracteriza os seus livros. “Mas essa consciência da morte e do sentido trágico da vida é quebrada pela vitalidade aparentemente ilimitada e engenhosa da narrativa que, por sua vez, é uma representante da força vital ao mesmo tempo assustadora e edificante da realidade e da própria vida. A comédia e o grotesco em García Márquez podem ser cruéis, mas também podem deslizar para um humor de conciliação”, disse a Academia.
Gabo também escreveu roteiros de cinema e teve alguns livros transformados em filme, como Amor em tempo de cólera, em 2007, e Memória de minhas putas tristes, em 2011.
Orgulho latino-americano
Embora tenha passado grande parte de sua vida em uma espécie de auto-exílio, Gabo era considerado por muitos em seu país como o filho mais notável da Colômbia. O restante da América do Sul também o reivindicava orgulhosamente como um dos autores que ajudaram o mundo a olhar para a literatura da região – embora fosse apenas um dos ícones latino-americanos dos anos 1960, ao lado do mexicano Carlos Fuentes, do chileno Pablo Neruda e do peruano Mario Vargas Llosa (os dois últimos também ganhadores do Nobel de Literatura).
As obras de Gabriel García Márquez eram espelhadas na realidade, com personagens e histórias retratando as belezas, fantasias e dramas da América Latina. Seus textos trazem ditadores, guerras, amor, pobreza e muitos outros elementos que ajudaram os latino-americanos a entenderem melhor a sua própria cultura. “Creio que meus livros tiveram impacto político na América Latina porque ajudam a criar uma identidade latino-americana. Eles ajudam os latino-americanos a se tornarem mais conscientes de sua cultura”, disse em uma entrevista ao jornal New York Times, em 1988.
Cem anos de solidão costuma integrar listas de leitura obrigatória em escolas da Colômbia, Chile e Peru, entre outros países latinos. O livro é também uma ótima opção para quem estiver aprendendo a língua espanhola.
A obra prima de García Márquez exige um vocabulário bem amplo e pode não ser das mais simples de se entender em espanhol, embora, o mesmo seja verdadeiro para suas traduções. A história é contada de forma bem direta, mas as diversas gerações de personagens com o mesmo nome, além de voltas no tempo, demandam atenção constante do leitor.
Há até quem recomende escrever uma árvore genealógica dos personagens para poder seguir a história sem se perder!
Quem ainda não tem confiança para se aventurar em um texto complicado, mas gostaria de utilizar Gabo no aprendizado do espanhol, pode começar lendo os seus diversos contos. Em geral, eles são curtos (alguns podem ser lidos em menos de 30 minutos) e fáceis de compreender.
Um dos mais famosos é Ojos de perro azul, publicado pela primeira vez em 1950, no jornal El Espectador. Ele conta a história de um casal que se conhece em seus sonhos. Todas as noites, eles se encontram em um quarto onde conversam e ficam juntos até que um deles acorde. Em certo ponto, eles decidem criar uma senha para tentar se reconhecer no mundo real: pronunciar em voz alta ou escrever em um lugar visível a frase “ojos de perro azul“. Contudo, o plano tem seus desafios. É uma história sobre um amor que não consegue superar as barreiras da fantasia para se concretizar.
Aqui é possível ler outros contos de Gabo em espanhol.
Veja também da série Clube do Livro: