Ilustração de Ginnie Hsu
Ainda me lembro de quando abri uma obra de José Saramago pela primeira vez. Eu tinha 19 anos e havia comprado uma grande leva de livros on-line, entre eles Ensaio sobre a cegueira (displicentemente traduzido para o inglês como Blindness). Li com euforia as suas 312 páginas entre intervalos na faculdade, deslocamentos e duas madrugadas sem sono.
A história alegórica, embora tão real, de um mundo em caos repentino é irresistível. Quando uma epidemia de cegueira “branca” (uma referência à cegueira moral) se espalha por quase toda a população, a sociedade civilizada entra em colapso, abrindo espaço para a natureza humana em seu pior e mais degradante estado. Em meio a essa anarquia, há uma narrativa de superação de diferenças para reencontrar a humanidade perdida.
O Ensaio sobre a cegueira é um livro gráfico, por vezes violento. E talvez seja a obra que mais combine com o estilo de escrita de seu autor. Saramago subvertia intencionalmente as regras formais do português com, entre outras técnicas, parágrafos a ocupar páginas inteiras e uma narrativa construída quase sem pontuação.
Em vez de travessões ou quebras de linhas para indicar diálogos/mudanças de falas, o escritor português costumava utilizar vírgulas para cadenciar as frases conforme a linguagem oral. Ele indicava cada fala de uma conversa ao iniciá-la, normalmente após uma vírgula, com letra maiúscula. Pontos finais também eram escassos para dar ritmo ao texto.
Em uma de suas muitas entrevistas sobre o tema, Saramago disse: “Não sei se são muitas as vírgulas. Creio que são as necessárias, ou as indispensáveis. Há uma razão básica que é uma tentativa da aproximação do discurso escrito ao discurso oral […] Confio na sensibilidade do leitor. O livro de alguma maneira é entregue inacabado neste particular. Mas há alguma coisa que para mim é fundamental. Nós falamos como quem faz música. Toda fala e toda música se constrói com sons e pausas. Nos meus livros, nem sequer eu me atreveria a chamar a vírgula e o ponto de sinais de pontuação, os chamo de sinais de pausa. Uma pausa breve e uma pausa mais longa, como se fosse música.”
A vida sem luxos de José Saramago
Saramago nasceu na aldeia de Azinhaga, província do Ribatejo em Portugal, em 16 de novembro de 1922. Filho e neto de camponeses sem terra, mudou-se com os pais a capital Lisboa ainda pequeno. Por lá, passou boa parte da vida adulta, embora com estadias em seu vilarejo.
Não fosse pela própria iniciativa de um funcionário do cartório, chamaria-se apenas José de Sousa, como o seu pai. Mas o funcionário lhe acrescentou Saramago, a alcunha pela qual a família paterna era conhecida em Azinhaga. Conforme o escritor esclarece, saramago “é uma planta herbácea espontânea, cujas folhas, naqueles tempos, em épocas de carência, serviam como alimento na cozinha dos pobres”.
Saramago enfrentou uma infância difícil e pobre. Perdeu o irmão mais velho pouco tempo depois de chegar a Lisboa, onde sua família não tinha dinheiro suficiente para alugar uma casa apenas deles. Só foram morar sós quando o escritor tinha 13 ou 14 anos.
A dificuldade financeira também afetou seus estudos. Apesar de bom aluno na escola primária e no liceu, o escritor precisou abandonar os estudos normais. Teve que entrar para uma escola de ensino profissional, onde se qualificou durante cinco anos para ser serralheiro mecânico.
No ensino técnico, estudou também francês e literatura. Não tinha livros em casa e só comprou os seus aos 19 anos, e com dinheiro emprestado por um amigo. “Terminado o curso, trabalhei durante cerca de dois anos como serralheiro mecânico numa oficina de reparação de automóveis. Também por essas alturas tinha começado a frequentar, nos períodos nocturnos de funcionamento, uma biblioteca pública de Lisboa. E foi aí, sem ajudas nem conselhos, apenas guiado pela curiosidade e pela vontade de aprender, que o meu gosto pela leitura se desenvolveu e apurou”, escreveu em uma autobiografia.
José Saramago trabalhou ainda como desenhador, funcionário da saúde e da previdência social, editor e jornalista. Publicou o seu primeiro livro, Terra do pecado, em 1947, e ficou sem lançar outra obra até 1966. Para melhorar o orçamento, passou a traduzir, incluindo Pär Lagerkvist, Jean Cassou e Tolstói.
A obra de José Saramago
É impossível falar de José Saramago sem mencionar a sua obra mais polêmica: O evangelho segundo Jesus Cristo. O livro narra uma Maria não virgem, um Jesus temeroso, um Judas generoso, uma Madalena voluptuosa, um Deus vingativo e um Diabo simpático, além de descrições minuciosas de como morreram os mártires dos primeiros séculos do cristianismo. Saramago, um ateu confesso, foi considerado um herege.
O livro, publicado em 1991, causou desentendimento com o então subsecretário de Estado da Cultura de Portugal, Sousa Lara, que o julgou uma ofensa à tradição católica portuguesa e o retirou da lista do Prêmio Europeu de Literatura. Saramago deixou então Portugal e refugiou-se na ilha espanhola de Lanzarote até sua morte, aos 87 anos, em 2010.
Sete anos depois do exílio, em 1998, Saramago tornou-se o primeiro (e único, até o momento) escritor em língua portuguesa a ser laureado com o Nobel de Literatura. Em 2018, celebra-se o 20º aniversário da entrega do prêmio, na qual o autor homenageou os avós camponeses e analfabetos.
Saramago manteve uma amizade na velhice com o escrito baiano Jorge Amado, com quem trocou inúmeras cartas entre 1992 e 1997 – que podem ser lidas no livro Jorge Amado/José Saramago – Com o mar por meio.
Segundo Pilar del Río, viúva do escritor português, Saramago dizia que o primeiro Nobel de Literatura para um autor em português deveria ser de Jorge Amado. “Os dois fizeram um pacto: compartilhar o prêmio. O que acontece é que quando deram o prêmio a José, Jorge Amado estava muito mal e não pôde ir”, disse Pilar ao jornal El País, em 2016.
Os livros de Saramago venderam mais de 2 milhões de exemplares apenas em Portugal, um país com 10 milhões de habitantes, e foram traduzidos para mais de 25 línguas.
Dos livros para os filmes
Diversas obras do autor português foram adaptadas para o cinema, mas Saramago sempre hesitou em liberar os direitos de Ensaio Sobre a Cegueira porque não queria que a obra caísse em mãos erradas. Coube ao diretor brasileiro Fernando Meireles trazer a história para a telona em 2008, após convencer o escritor.
O filme, contudo, não agradou à crítica ou ao público, arrecadando cerca de 20 milhões de dólares internacionalmente em um orçamento de 25 milhões. Entretanto, Saramago se emocionou ao assistí-lo pela primeira vez em Portugal.
Em 2013, o Homem duplicado ganhou adaptação dirigida pelo canadense Denis Villenueve (de Blade Runner 2049 e Arrival) sob o título de Enemy. A história de um homem que procura seu sósia após vê-lo em um filme recebeu críticas positivas, mas teve bilheteria de apenas 3,4 milhões de dólares.
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