Como aprender inglês com música (especial David Bowie)

O artista britânico era um camaleão e um habilidoso contador de histórias, veja como melhorar o seu inglês com as músicas de David Bowie!
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Ilustrado por Paula P. Rezende

Berlim sempre despertou minha curiosidade. Sou aficcionado pela Guerra Fria, e a cidade alemã na época, tratava-se talvez, do maior exemplo da divisão política-cultural entre os Estados Unidos-Ocidente – e a União Soviética.

A abertura berlinense aos mais diversos movimentos culturais também me fascina. Parte da minha atração por Berlim está, contudo, relacionada ao fato de David Bowie ter vivido ali um de seus períodos mais criativos. Os cerca de três anos vividos pelo músico britânico na cidade renderam a chamada Trilogia de Berlim (Low, Heroes e Lodger), e músicas como “Always Crashing in the Same Car” e “Heroes”.

Estou beirando os 30 anos e, assim como Bowie em 1976, me mudei para a cidade que tanto inspirou um dos meus ídolos. O cantor possuía um talento musical inegável e uma grande habilidade para contar histórias complexas e surreais. As suas letras são uma ótima oportunidade para praticar interpretação de texto e aprender formas criativas e poéticas de como se expressar em inglês. Vamos ver como aprender inglês com música! 

O cantor sem personalidade chegou ao topo das paradas 

David Robert Jones nasceu em Londres, em 8 de janeiro de 1947. Aos 13 anos, já demonstrava interesse pela música e se aventurava em aulas de saxofone. Passou por algumas bandas até se reinventar como David Bowie e investir na carreira solo em 1966.

Em novembro de 1965, ainda David Jones e vocalista da The Lower Third, sua banda foi reprovada no teste de talentos da rádio BBC. Pior: o júri o descreveu como “um cantor sem personalidade” e um “amador que canta notas erradas e fora do tom”.

O jovem Bowie levaria quatro anos para provar à crítica musical o erro cometido. Foi apenas em 1969, em meio ao frenesi da chegada do homem à Lua, que Bowie estourou com o single e álbum Space Oddity.

A música título traz o primeiro dos personagens criados pelo cantor: Major Tom, um astronauta à deriva no espaço. A canção chegou ao top 5 das mais tocadas do Reino Unido. O mundo passava a conhecer David Bowie. 

O britânico lançaria 28 álbuns de estúdio, atuaria em diversos filmes, produziria discos de Lou Reed e Iggy Pop, e escreveria trilhas de musicais de sucesso na Broadway. Poucos artistas experimentaram tanto e se reinventaram de forma tão eficaz. Seus discos trazem gêneros que vão do folk, rock industrial, soul, jazz, R&B, eletrônico, entre outros.

Bowie também era um camaleão na aparência. Nos anos 1970, exibia um visual colorido e andrógino que o definiria para sempre, incluindo cabelos vermelhos, mullets e maquiagem. Ele desafiou outros rótulos, por exemplo, ao abertamente dizer-se bissexual.

David Bowie, um sucesso mundial 

O  álbum que o transformou em estrela internacional, The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders from Mars (1972), retrata um mundo no qual restam apenas cinco anos. Mas um alienígena roqueiro chamado Ziggy Stardust toma a forma humana e oferece uma esperança de salvação à Terra. Ziggy virou um dos personagens mais adorados de Bowie, que passou a se apresentar no palco como o alien pansexual.

“Sempre fui um garoto tímido. Eu não ganhava vida no palco. Não ficava tão tímido se adotasse um personagem. Ziggy era conveniente e uma ideia teatral muito brilhante”, disse Bowie à BBC já nos anos 2010.

Na primavera de 1973, Bowie “matou” Ziggy e abriu espaço para outro ícone: Aladdin Sane deu nome ao novo álbum do artista e seu rosto cortado por um raio azul e vermelho tornou-se uma das imagens mais conhecidas da história.

Para se recuperar do vício em cocaína, Bowie mudou para Berlim em 1976. Na cidade, concluiu seus discos mais influenciais. Ao lado de Ziggy Stardust e Hunky Dory, a trilogia inspirou Joy Division, Radiohead, Pete Shelley, Suede, Culture Club, Nine Inch Nails, Janelle Monae, Jay Z, Arctic Monkeys, Placebo, Madonna, Lady Gaga, The Killers e Franz Ferdinand.

Os anos 1980 foram agitados. Em 1983, Let’s Dance tornou-se o disco mais bem-sucedido do artista, vendendo cerca de 7 milhões de cópias. Nos anos 1990, Bowie seguiu produtivo, mas na década seguinte ficou longe dos holofotes. Somente em 2013, no seu aniversário de 66 anos, ele lançou The Next Day, o primeiro álbum em 10 anos.

Em 8 de janeiro de 2016, Bowie lançou Blackstar, seu 28º e último disco – o único a atingir o topo dos mais vendidos nos EUA. Dois dias depois, Bowie morreu vítima de um câncer.

As histórias nas letras de Bowie

As letras de Bowie costumam ser ótimos exemplos de narrativas habilidosas. Em poucos versos, o artista britânico abordava de forma sofisticada temas que o motivavam, desde o espaço a críticas sociais. 

Tentar entender o significado de suas canções (nem sempre apresentadas de maneira simples) pode ser uma atividade interessante, e como aprender inglês com música. Quase sempre, contudo, esse exercício é bem pessoal.

Space Oddity (1969)

A mensagem do primeiro hit de Bowie ainda gera debates. A música narra a missão de Major Tom ao espaço. O astronauta entra em órbita com sucesso, mas perde contato com o centro de controle na Terra. O seu destino nunca foi revelado claramente, ficando subentendido que ele está perdido na imensidão do universo.

A canção foi inspirada por 2001: Uma odisseia no espaço (1968), de Stanley Kubrick. Bowie assistiu ao filme diversas vezes sob o efeito de drogas, conforme admitiu à revista Performing Songwriter, em 2003. “Space Oddity” ganhou, assim, interpretações de que a viagem de Major Tom seria uma metáfora para o distanciamento da realidade durante o consumo de drogas. A música foi escrita quando o relacionamento do cantor com a atriz Hermione Farthingale havia terminado, logo, há quem veja uma viagem melancólica rumo ao isolamento. 

Em termos de narrativa, vejamos alguns trechos da letra (versão completa aqui): 

Ground Control to Major Tom (Controle de solo para Major Tom)
Commencing countdown, engines on (Iniciar contagem regressiva, motores ligados)
Check ignition and may God’s love be with you (Checar ignição e que o amor de Deus esteja com você)
Ten, Nine, Eight, Seven, Six, Five, Four, Three, Two, One, Lift off  (10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1, decolar)

Nesta estrofe, para ilustrar a cena da espaçonave de Major Tom deixando a Terra, Bowie utiliza termos similares àqueles da Nasa como ground control to XX, commencing countdown (iniciar contagem regressiva) e lift off (decolar), além de simular os procedimentos para o lançamento. Isso cria a impressão de que quem escuta está acompanhando de perto um momento real.

May God’s love be with you” é uma expressão semelhante, embora, diferente do nosso “Deus te abençoe”, usada aqui para desejar sorte em uma missão perigosa. 

Para quem enxerga em “Space Oddity” uma relação com o uso de drogas, a decolagem seria uma referência ao início dos efeitos da substância, ou seja, da “viagem”.  

Here am I floating round my tin can (Aqui estou flutuando ao redor da minha lata)
Far above the Moon (Bem acima da Lua)
Planet Earth is blue (A Terra é azul)
And there’s nothing I can do (E não há nada que eu possa fazer)

Com frases curtas que descrevem alguns elementos do cenário, Bowie segue alimentando a sensação de proximidade. Aqui, Major Tom já deixou a espaçonave (a que ele chama de tin can, em referência a uma daquelas latas de molho de tomate, por exemplo). Ele está flutuando ao redor da embarcação, sem contato com o centro de controle. O astronauta observa a Terra, aparentemente, conformado com a situação (there’s nothing I can do / não há nada que eu possa fazer).

Life On Mars? (1971)

Em 1968, Bowie escreveu “Even a Fool Learns to Love” (Mesmo um tolo aprende a amar, em tradução livre), uma versão em inglês para a canção francesa “Comme d’habitude” (Como de costume, em tradução literal), de Claude François e Jacques Revaux. 

“Even a Fool Learns to Love” acabou rejeitada e, no ano seguinte, a letra do canadense Paul Anka foi gravada por Frank Sinatra como a clássica “My Way”. Irritado, Bowie fez uma nova versão da música: “Life on Mars?” Na contracapa do disco Hunky Dory, o londrino deixou a mensagem inspired by Frankie (inspirado por Frankie).

Life on Mars?” é uma narrativa surreal sobre “uma garota sensível” – referida na letra como “girl with the mousy hair” (a garota com o cabelo marrom) – que busca escapar da realidade por meio de mídia/cinema. Bowie afirmou em uma entrevista que a letra aborda a alienação e “um tipo pessoal de isolamento”.

“Acho que ela [a protagonista] se vê desapontada com a realidade […] estão dizendo a ela que há uma vida muito maior em algum lugar e ela está amargamente desapontada por não ter acesso a ela”, disse o cantor.

Vamos a alguns trechos da letra (versão completa aqui): 

It’s a God-awful small affair (É um pequeno caso horrível)
To the girl with the mousy hair (Para a garota com o cabelo castanho)
But her mummy is yelling no (Mas a mãe dela está gritando “não”)
And her daddy has told her to go (E o pai dela a disse para ir)
But her friend is nowhere to be seen (Mas seu(a) amigo(a) não está em lugar algum)
Now she walks through her sunken dream (Agora ela percorre o seu sonho submerso)

Nesta estrofe, Bowie constrói um clima de tensão familiar e de isolamento da protagonista (seu/sua amigo/a a deixa sozinha) com versos curtos que seguem uma estrutra comum em poemas.

O artista britânico deixa uma dica em relação à apatia da garota ao usar o termo mousy-hair, uma maneira de descrever um cabelo castanho nada especial ou atraente.

God-awful é também uma expressão interessante. Significa algo muito ruim, difícil e desagradável. Talvez seja melhor evitar esse termo com pessoas mais religiosas, pois ele envolve a citação do nome de Deus em um contexto depreciativo. Fica a dica!

To the seat with the clearest view (Para o assento com a melhor vista)
And she’s hooked to the silver screen (E ela está vidrada na tela do cinema)
But the film is a saddening bore (Mas o filme é um tédio deprimente)
For she’s lived it ten times or more (Pois ela o viveu dez vezes ou mais)

O autor deixa subentendido que a garota assistiu ao mesmo filme diversas vezes em busca de uma fuga da sua realidade (For she’s lived it ten times or more), mas já não encontra nada além do tédio (boredom). Em termos de vocabulário, a expressão hooked to (viciado/vidrado em algo) e a palavra saddening (entristecedor) – de sadden (entristecer/afligir) – podem ser úteis.  

Heroes (1977)

Para muita gente, a melhor música de Bowie, “Heroes” transformou-se em um hino. Lançada no álbum homônimo, a canção retrata a história de um casal ao pé do lado ocidental do Muro de Berlim. Em 2003, o artista britânico revelou ao Performing Songwriter que os personagens da música eram o produtor Tony Visconti e sua namorada alemã.

“Era muito tocante porque eu podia ver que Tony estava apaixonado de verdade e foi esse relacionamento que motivou a música.” 

 

“Heroes” ganhou um sentido de resistência (defiance) devido ao período e local onde foi gravada: durante a Guerra Fria em uma Alemanha e Berlim dividida entre uma democracia e uma ditadura. 

Vejamos alguns trechos da letra (versão completa aqui):

Though nothing, nothing will keep us together (Embora nada, nada vá nos manter juntos)
We can beat them, forever and ever (Nós podemos vencê-los, para todo o sempre)
Oh, we can be heroes just for one day (Oh, podemos ser heróis apenas por um dia)
I, I will be King (Eu, eu serei rei)
And you, you will be Queen (E você, você será rainha)
Though nothing will drive them away (Embora nada os afastará)
We can be heroes just for one day (Nós podemos ser heróis apenas por um dia)
We can be us just for one day (Podemos ser nós mesmo apenas por um dia)

Desta parte da letra, podemos tirar duas expressões valiosas: drive them away (afastá-los)  – existem outras variantes como drive you/her/him away (afastar você/afastá-la/afastá-lo) – e forever and ever (para todo o sempre). Elas são bem comuns no dia a dia. 

I, I can remember (Eu, eu me lembro)
(I remember) (Eu me lembro)
Standing by the wall (De pé, junto ao Muro)
(By the wall) (Junto ao Muro)
And the guns, shot above our heads (E as armas, dispararam acima de nossas cabeças)
(Over our heads) (Sobre nossas cabeças)
And we kissed, as though nothing could fall (E nos beijamos, como se nada pudesse cair)
And the shame, was on the other side (E a desonra estava do outro lado)

Neste trecho, vale destacar eventuais referências ao então lado oriental de Berlim. And the guns, shot above our heads poderia ser uma menção a soldados armados em pontos de observação na Berlim Oriental, prontos para atirar em qualquer um que tentasse escalar o muro. And the shame, was on the other side seria uma referência à ditadura da Alemanha Oriental.

Quer conhecer mais sobre David Bowie? Escute a nossa playlist com algumas de suas músicas e de artistas que ele inspirou ao longo de mais de 50 anos de carreira! 

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