“Todo substantivo possui seu gênero gramatical, e a distribuição deles muitas vezes é feita sem sentido ou método. Por isso, se deve decorar cada substantivo com seu gênero. Não há outra possibilidade. Para se conseguir isso, é preciso ter uma memória de elefante. Em alemão, uma senhorita (Fräulein) não tem gênero, é uma palavra neutra. Já, o nabo (Rübe), tem, é feminino”.
Apesar de Mark Twain ter escrito no ano de 1880, certamente com ironia, sobre A terrível língua alemã, seu texto é bem adequado para nos mostrar algumas divergências lógicas do alemão: por exemplo, o fato de uma menina (Mädchen) ou uma senhorita (Fräulein) receberem um artigo neutro, apesar de ambas serem claramente seres femininos, dependendo do discurso de gênero. “Sim, mas isso é por causa do sufixo -lein e -chen”, alguém sussurra lá de trás. “Eles neutralizam tudo.“ Aha! Como se sabe, palavras podem mover montanhas. Então os sufixos têm o poder de alterar o gênero biológico de uma menina? Ou de um Jüngelchen (menininho)? E como funciona isso então com Messer (faca – palavra neutra), Gabel (garfo – palavra feminina), Teller (prato – palavra masculina) e bule para chá (Teekanne – palavra feminina)? Eles têm sexo? Bem, se diz das Messer (das* é o artigo neutro em alemão), die Gabel (die é o artigo feminino em alemão), der Teller (der é o artigo masculino em alemão)* e die Teekanne. E nos filmes da Disney, esses objetos cantam até com vozes masculinas e femininas correspondentes. Então, está tudo claro. Não é? Hum, talvez nós não nos atemos ao fato de que no mundo real, os objetos não têm vida e, assim, também não podem ter qualquer gênero biológico.
O que é gênero gramatical? A flexão de gênero é importante?
Apesar de nós provavelmente não pensarmos sobre o assunto com frequência, nós lidamos diariamente com dois gêneros: o (bio)lógico e o gramatical. Em muitas línguas, existe um sistema de gêneros através do qual todos os substantivos são classificados com um gênero – independentemente de se tratar de um ser vivo, como um gato, de um ser aparentemente vivo, como um robô com inteligência artificial ou de um ser inanimado, como uma pedra. Algumas línguas, como turco, japonês ou tailandês não possuem gênero; outras, como o inglês ou africâner não possuem gênero de substantivo, mas marcam o gênero através de pronomes (como he, she ou it); a maioria das línguas têm um gênero feminino e um gênero masculino; outras, como alemão, polonês ou russo têm ainda o gênero neutro. E algumas línguas diferenciam através do gênero até mesmo seres animados e inanimados.
O gênero parece ser mais do que uma confusão imensa que só cria mais transtorno ao aprendizado de idiomas. Alguns estudos sugerem que um gênero gramatical e a flexão de gênero influencia nossa percepção do gênero biológico e a percepção resultante dos objetos.
Se Montag (segunda-feira) fosse uma pessoa… (seria um homem)
Há muitos exemplos do impacto desta influência. Por exemplo, durante o estudo de Jakobson do ano de 1966, pediu-se a falantes nativos de russo que personificassem os dias da semana. Os participantes personificaram os dias que têm artigos masculinos em sua língua, como понедельник (segunda-feira), вторник (terça-feira), четверг (quinta-feira) logicamente como homens, e os dias da semana gramaticalmente femininos среда (quarta-feira), пятница (sexta-feira) e суббота (sábado), logicamente, como mulheres.
Sua maçã chama-se Patrick ou Patricia?
Em um outro estudo no ano de 2002, Lera Boroditsky, Lauren A. Schmidt e Webb Phillips ensinaram a um grupo de falantes de espanhol e alemão nomes próprios para 24 objetos (uma maçã poderia chamar-se Patrick, por exemplo). Os participantes decoraram com muito mais facilidade as combinações de nomes com objetos, quando o gênero do nome próprio correspondia ao gênero gramatical do nome do objeto em sua língua materna – já que em alemão, a palavra Apfel (maçã) é masculina, os falantes nativos de alemão tinham muito mais facilidade em decorar a combinação Apfel-Patrick do que Apfel-Patricia. Para os falantes de espanhol foi o contrário, já que a palavra maçã, la manzana, é feminina. O experimento apresenta principalmente uma forma de pensar inconsciente, pois os participantes foram testados em inglês, um idioma, onde os substantivos não têm gênero. Ou seja, os participantes tinham introjetado gênero gramatical de sua língua materna de tal maneira, que eles o transferiam para outras línguas.
Senhor ou Senhora Lua?
Mas como se dá a transferência de gêneros em relação a nossas representações mentais de objetos? O que significa ser feminino para uma maçã? Uma possibilidade é que várias características masculinas ou femininas estereotipadas de um objeto serão destacados de acordo com o gênero gramatical: nós salientamos as características de um objeto como propriedades e atributos que são dignos de serem decorados e que combinem com seu gênero gramatical.
Isso fica bem claro através do exemplo da lua, que é uma palavra feminina em muitas línguas românicas: “A lua é feminina, lógico!”, disse uma de minhas colegas italianas quando a discussão surgiu. Isso é tão claro quanto certas relações entre o ciclo da lua e ciclos femininos… não é? Bem, para falantes nativos de outros idiomas, como alemão ou hebraico, isso não é tão óbvio – para eles, a lua é masculino. E mesmo que se inclua o controle da lua sobre as marés e os ciclos da vida à discussão: isso faz do satélite natural inanimado de pedra que nos rodeia, e ao qual tantas poesias foram dedicadas e pelo qual os lobos tanto uivam, biologicamente feminina?
E o sol? Os falantes de alemão provavelmente iriam ressaltar sua função mais próxima de doar vida e calor. Para os falantes de línguas românicas, esta bola de fogo cheia de poder e força lá no alto do céu é claramente algo masculino, assim como seu oposto é um feminino.
De chaves barbadas e pontes perigosas
Para comprovar se o gênero gramatical realmente influencia os falantes de diferentes línguas a se concentrar em diferente aspectos dos objetos, Boroditsky, Schmidt e Phillips realizaram um experimento em 2002: eles elaboraram uma lista com 24 nomes de objetos que têm gêneros opostos em alemão e espanhol, e perguntaram aos falantes nativos de ambas as línguas pelos três primeiros adjetivos que lhes vinham em mente espontaneamente e que combinassem com os objetos.
O experimento foi realizado em inglês para evitar a influência através de artigos masculinos ou femininos. Mais tarde, todos os adjetivos citados – sem relação com o objeto descrito – foram classificados como masculinos ou femininos por um grupo de participantes falantes nativos de inglês.
Pôde-se concluir que os participantes seguiram os gêneros gramaticais de sua língua nativa e atribuíram adjetivos femininos aos objetos de gênero gramatical feminino e, adjetivos masculinos aos objetos de gênero gramatical masculino. Para a palavra alemã der Schlüssel (a chave – palavra masculina em alemão), foram atribuídos, por exemplo, adjetivos como duro, pesado, serreado, metálico, dentado e útil – isso nos leva a imaginar que as chaves em alemão têm barba… A palavra espanhola gramaticalmente feminina, la llave foi descrita como dourada, intrigante, encantadora, brilhosa e pequenina. Uma ponte é uma palavra feminina em alemão e com isso, é bonita, elegante, frágil, tranquila, linda e esbelta, enquanto o vocábulo espanhol correspondente el puente (um masculino) é grande, perigoso, longo, forte, estável e poderoso.
Se nós tivermos em vista que os falantes de diferentes línguas reproduzem diariamente centenas, talvez até milhares de vezes o gênero dos substantivos através de artigos, pronomes, adjetivos declinados ou até mesmo verbos flexionados, então, é bem provável que o mundo de um falante nativo de alemão com suas chaves dentadas, suas pontes elegantes e luas masculinas seja muito diferente do mundo de um falante nativo de espanhol com chaves pequeninas, pontes perigosas e sóis masculinos. E os falantes nativos de inglês? Eu acho que eles ainda não assimilaram por completo a senhorita nem feminina, nem masculina e o nabo feminino.
Ilustração por Carolina Búzio