A evolução dos gêneros gramaticais: por que uma chave em alemão é masculina e em português é feminina? Uma breve análise sobre a história dos gêneros gramaticais

Masculino e feminino parecem distinções perfeitamente normais, mas isso é muito mais cultural do que natural. Como os gêneros gramaticais influenciam a nossa visão de mundo.

O seu ouvido não coça quando são pronunciadas frases como “Bernardo e suas irmãs, eles já chegaram”? Ou não soa para você estranho que em línguas como o francês exista uma palavra para padeira (de la boulangère), mas não para a ministra ( sim, os revolucionários franceses chamam uma ministra de “Madame le Ministre”)? A questão está longe de girar apenas em torno de um artigo ou uma terminação no feminino se admitirmos que a língua molda a nossa visão de mundo. De onde vem o gênero gramatical?

Alex Taylor, jornalista britânico que fala um francês impecável, descreve seu desespero de criança, quando aprendeu que as coisas que aparentavam ser bastante neutras para ele – desprovidas de conotação simbólica – na verdade tinham um gênero. Ele olhava em vão a mesa à sua frente em uma procura desesperada por um traço de elegância ou qualquer outra característica feminina que justificasse o artigo la.

Por que, então, existem essas atribuições arbitrárias de gênero ? E por que o gênero masculino tende a ter preferência?

Útil ou não?

Se a distinção entre masculino e feminino parece perfeitamente normal para nós, é bom lembrar que cada idioma possui a sua própria ideia quando o assunto é gênero. Porém, isso não existe de forma alguma nas línguas fino-úgricas (grupo linguístico em que se destacam o húngaro, o finlandês e o estoniano). Nessas línguas, não há distinção entre masculino e feminino, mas apenas entre seres animados e inanimados, distinção igualmente conservada nas línguas eslavas. Quando um húngaro ou um finlandês fala de como sua avó contava histórias, eles não referem à avó usando o ela, mas sim o que contava a história. E não é tudo: basco, estoniano, turco e, até certo ponto, mandarim ignoram completamente o gênero.

Observando um pouco mais de perto, é fácil perceber por que a distinção animado/inanimado precede o masculino/feminino. Mas por quê? Muito simples: porque o gênero não é uma distinção útil, como argumenta Antoine Meillet, um dos principais linguistas do séc. XX. Ele cita como prova dessa inutilidade o caos que reinou entre os diferentes idiomas, já que nós não podemos deduzir o gênero de uma palavra a partir de suas “reais” características. Por que a chave é masculino em alemão (der Schlüssel), mas feminino em francês (la clé)?

Outro indicativo é a ocasional discórdia entre gênero gramatical e natural, como a palavra”menina” em alemão, que leva o artigo neutro: das Mädchen. Ou citando Mark Twain: “Em alemão, uma garota jovem não tem sexo, enquanto um nabo tem.”

Tais diferenças entre os idiomas são evidentes, mas o real mistério dos gêneros pode ser visto até mesmo dentro de um idioma. É bem fácil perceber a conexão simbólica entre a palavra terra, mãe fecunda que oferece alimento necessário à vida, e o seu gênero gramatical, palavra feminina em quase todos os idiomas. Mas o que a banana tem que evoca o gênero feminino? Ou não seria mais tentador afirmar o contrário…

Eis o porquê de muitos linguistas não aceitarem ver a representação da nossa experiência de mundo refletida nos gêneros gramaticais. Eles podem ser úteis em situações específicas, mas frequentemente não são em um contexto geral. Outro exemplo que reforça essa lógica é a frase “os leões caçam”, sendo que na verdade são as leoas que se encarregam da tarefa. Já os finlandeses, com sua falta de gênero, apresentam uma solução prática: eles simplesmente adicionam as palavras masculino, feminino, homem, mulher ao substantivo quando necessário.

E Deus criou o Homem – e o gênero feminino

Esforços para reconstruir um teórico idioma protoindo-europeu, que seria a fonte pré-histórica de nossas atuais línguas europeias, tendem a mostrar que seres animados/inanimados foram a primeira distinção. Isso é típico de uma visão animista de mundo, de uma época em que rituais e crenças eram fortemente conectados a elementos naturais. A distinção, no entanto, desapareceu aos poucos, cedendo lugar ao masculino e feminino, assim como as religiões monoteístas substituíram as crenças animistas. Enquanto o feminino era fortemente associado com as noções de força e poder nos tempos pagãos, as religiões monoteístas associaram esses atributos com a masculinidade. Arent J. Wensinck e Jean Markale estão entre os estudiosos que defendem essa ideia, mas isso ainda permanece difícil de se provar.

Muito mais evidente e fácil de rastrear retrospectivamente é a dominância gradual do gênero masculino. No grego antigo e no latim, a Regra da Proximidade decide a concordância gramatical. Basicamente, essa regra estabelece que a concordância e a conjugação são determinadas pelo elemento mais próximo, por exemplo, na frase “Não tinha nem sorvete ou chocolates na festa” – você pode usar tanto tinha quanto tinham neste caso, entendeu?… Não?… Ah, deixa para lá!

Sob esta lógica, um francês poderia escrever “ces phénomènes et créatures dangereuses” – como um Quebecois(quem vive no Québec) a propósito pode – mas infelizmente com as regras gramaticais modernas de francês, ele não pode. Em 1675, os ouvidos delicados de L’Abbé Bouhours ficaram extremamente afrontados com essa ofensa ao nobre gênero masculino – como é possível que a nobre presença de um substantivo masculino seja ofuscada a ponto de ele ter de concordar com um substantivo feminino? Assim o gênero masculino tomou sistematicamente o lugar da regra da proximidade.

Gênero, uma história de cultura

Então, parece que o gênero gramatical não está primariamente conectado à nossa experiência ou percepção de mundo. E tampouco parece ter nascido de uma verdadeira necessidade comunicativa, mas de uma evolução histórica, influenciada certamente pela gramática, mas antes de tudo pela cultura.

A diversidade linguística do mundo é testemunha do fato de que o gênero gramatical não é universalmente percebido do mesmo jeito. Muito pelo contrário. Entre a ausência de gêneros do finlandês e do húngaro, a brincadeira dos três gêneros do alemão, e a distinção inglesa que coloca de um lado pessoas e todo o resto na categoria “it”, todos os idiomas possuem a sua percepção singular. Mas gostos mudam. O sueco provou que, longe de ser eterna, a estrutura do idioma é bem capaz de evoluir em sincronia com normas sociais. Em 1966, o pronome pessoal neutro hen foi introduzido ostensivamente para lidar com conceitos ou objetos assexuados, e também para emancipar indiretamente a língua da visão binária de mundo.

“A língua… é fascista”, afirmou Roland Barthes, uma frase que evidencia o poder real e concreto da língua, deixando de lado o argumento de que o debate sobre gênero gramatical seria fútil. Se o gênero não é nascido das experiências reais da vida, o seu uso molda nossa visão do mundo: não está mais do que na hora de reconsiderarmos os valores ideológicos por trás do uso do gênero?

E se Shakeaspeare veria a lua como masculina ou feminina… o mistério permanece.

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