Ilustrado por Eleonora Antonioni
Culinária e literatura são dois mundos distantes que muitas vezes se encontram para o deleite de alguns leitores comilões. Façamos uma pequena viagem por entre os livros dos mais célebres escritores e as suas receitas brasileiras favoritas.
Quantas vezes os grandes clássicos da literatura, que forçavam você a estudar na escola, pareciam distantes da sua vida cotidiana? Impenetráveis, inatingíveis e, até mesmo, incompreensíveis!
Entretanto, tudo muda quando se acende uma faísca e uma conexão é criada entre você e o estado de ânimo do protagonista dos livros que lê. Você se sente como se estivesse no lugar desse personagem, finalmente consegue entender bem o seu sofrimento, a sua felicidade e até mesmo… sua fome.
“Mas por que ela não se apressa? Por que não se despacha? Por que não deixa de pensar em seu passado e come?” – eu teria perguntado à professora com fervor, se tivesse certeza de não ser sumariamente reprovada.
Se há uma coisa que me irrita profundamente, de fato, e que procuro evitar com o máximo cuidado durante o café-da-manhã, é que o biscoito que tenho em mãos se despedace e caia no leite. Caminho sem volta. E é inegável que agora, toda vez que vejo esse doce amarelo-palha, que não como por despeito, penso em Marcel Proust.
Uma das receitas brasileiras favoritas de Jorge Amado: a moqueca
- peixe;
- azeite de dendê (óleo produzido a partir do fruto da palmeira conhecida como dendezeiro e que, devido aos seus efeitos laxativos, é muitas vezes retirado da receita original);
- tomates, pimentões e cebolas;
- leite de coco;
- coentro e especiarias.
A caçarola onde a moqueca é cozida é a “panela de barro”: no passado, era feita de argila, mas hoje é comercializada também em cerâmica.
Jorge Amado é um escritor nascido no início do século XX, autor dos maiores clássicos da segunda fase do Modernismo no Brasil, entre eles: Capitães de Areia (1937), Gabriela Cravo e Canela (1958), Dona Flor e Seus Dois Maridos (1966). Pois bem, e sabem o que é maneiro entre tal prato e o escritor? Em todos os livros de Jorge Amado fala-se muito sobre a culinária e come-se fartamente, pois através da comida, Jorge Amado compartilha com a gente o seu fascínio por suas raízes baianas.
Dona Flor, por exemplo, tem dois maridos (um morto, Vadinho, e um vivo, o farmacêutico Teodoro, que lhe tomou como esposa assim quando viúva) e uma escola de gastronomia. Folheando as páginas do livro, você vai acabar entre suas panelas a preparar, entre outras especialidades, a moqueca de peixe e camarão.
Fãs do escritor dizem que as receitas brasileiras nos livros de Jorge Amado são tão detalhadas que, seguindo-as ao pé da letra, é muito difícil de cometer erros. Portanto, se vocês sentirem vontade de uma pitada de Brasil mesmo estando longe, Dona Flor será capaz de guiá-los na descoberta das iguarias locais.
O peru de Mário de Andrade
No Brasil, o prato mais natalino, que certamente não pode faltar nas mesas do banquete, é o peru. Existem realmente muitas maneiras de prepará-lo, mas gostaria de falar daquela descrita por Mário de Andrade em seu conto publicado, em 25 de dezembro de 1949, no Jornal da Tarde e intitulado “O peru de Natal“.
Mário de Andrade foi um poeta, musicólogo, escritor e um dos fundadores do modernismo brasileiro, no século XX. Em suma, um intelectual versátil que, em sua época, teve papel fundamental para a formação da identidade artística do país.
Em seu conto, o protagonista Juca decide que, apesar da morte recente de seu pai e do luto que a família ainda carrega, na mesa daquele Natal, certamente não poderia faltar o tradicional peru.
A princípio, horrorizadas com a ideia, as mulheres da casa – a mãe, a tia, a irmã e a namorada Rose – se deixam levar pelo encanto dos cheiros e sabores do cobiçado prato e seus acompanhamentos: farofa seca e farofa gorda.
A farofa é feita da farinha refogada com ingredientes e especiarias, e acompanha bem, mas não somente, as carnes. Ela é preparada geralmente com farinha de mandioca, de origem amazônica base da culinária indígena, mas também pode ser feita com a farinha de milho em flocos. Essa seca, no conto, é refogada apenas na manteiga, enquanto a gorda, que especificamente teria recheado o peru de Juca, é preparada com:
- farinha de mandioca;
- ameixas;
- nozes;
- cerejas;
- vísceras de animais (fígado, coração, tutano).
Para garantir que todos se sintam mais felizes e com menos a saudade do falecido, Juca decide comprar muita cerveja. Extremamente gelada. A bebida preferida de mamãe.
A rosquinha de Clarice Lispector
Sem sombra de dúvidas, Clarice Lispector foi uma das mulheres mais fascinantes da literatura brasileira, embora para os gringos seja uma leitura muito difícil: suas obras foram comparadas às de Virginia Woolf e James Joyce.
Em A Hora da Estrela (1977), seu romance de publicação póstuma, a protagonista Macabea é uma jovem muito pobre que acaba de se mudar para o Rio de Janeiro. O pouco dinheiro que ela tem nos bolsos dá para viver somente de cachorro-quente.
Quando Gloria, uma amiga sua (mas nem tão amiga assim, pois decide roubar-lhe o namorado), convida-a para um café e lhe permite comer quantos quitutes quiser, Macabea mal acredita em seus olhos e empanturra-se a ponto de passar mal.
Entre as delícias descritas por Clarice está a famosa rosquinha, com a qual Macabea se lambuza e enche os bolsos. É verdade: ela também carrega um estoque para casa.
A rosquinha é preparada com:
- farinha de trigo;
- leite condensado;
- fermento;
- ovos;
- açúcar.
E tudo é frito na frigideira. A receita pode ser personalizada à vontade. O importante é que não se perca a forma característica de uma rosquinha com um buraco no meio.
A cocada de Machado de Assis
Joaquim Maria Machado de Assis é outro grande nome da literatura brasileira. Nascido no Rio de Janeiro, no final do século XIX, em uma família de origens humildes, ele não se abdica de seus estudos e escreve suas duas grandes obras: Memórias Póstumas de Braz Cubas (1881) e Dom Casmurro (1899).
É em Dom Casmurro que o protagonista Bentinho, apaixonado por Capitu, percebe ser correspondido por ela quando decide anunciar que entraria no seminário e ela, embora ávida por doces, sequer percebe o homem que naquele momento passava ao seu lado tentando lhe vender uma cocada. Capitu está triste, na verdade. E Bentinho, que se dá conta disso, compra uma para ela.
A cocada, como o próprio nome sugere, é um doce típico à base de coco. A receita hoje inclui o uso de leite condensado. Certamente, aquela degustada por Bentinho e Capitu não o continha já que na época, o leite condensado era muito caro e difícil de ser encontrado. A original era à base de:
- rapadura (açúcar de cana solidificado);
- leite;
- coco.
O segredo da popularidade desse doce provavelmente está na simplicidade dos poucos ingredientes usados. Parece que Machado de Assis era de fato um fã comilão: a cocada aparece nas páginas de muitas de suas obras-primas.
Você também ama ler e cozinhar? Você se lembra de outros livros onde, entre as páginas, aparecem receitas que deram uma sutil ou explosiva água na boca?
As línguas se aprendem nos livros e à mesa…
Artigo originalmente escrito em italiano por VIVIANA VENNERI