As receitas brasileiras encontradas nos romances

Quantas vezes os grandes clássicos da literatura, que forçavam você a estudar na escola, pareciam distantes da sua vida cotidiana? Impenetráveis, inatingíveis e, até mesmo, incompreensíveis!
receitas brasileiras
Ilustrado por Eleonora Antonioni

Culinária e literatura são dois mundos distantes que muitas vezes se encontram para o deleite de alguns leitores comilões. Façamos uma pequena viagem por entre os livros dos mais célebres escritores e as suas receitas brasileiras favoritas.

Quantas vezes os grandes clássicos da literatura, que forçavam você a estudar na escola, pareciam distantes da sua vida cotidiana? Impenetráveis, inatingíveis e, até mesmo, incompreensíveis!

Entretanto, tudo muda quando se acende uma faísca e uma conexão é criada entre você e o estado de ânimo do protagonista dos livros que lê. Você se sente como se estivesse no lugar desse personagem, finalmente consegue entender bem o seu sofrimento, a sua felicidade e até mesmo… sua fome.

Sim, você não leu errado. Quando seu protagonista está com fome, porque não?
Eu posso dar um exemplo que me afeta de forma particular, de uma das minhas provas de literatura francesa na universidade. Eu me recordo ainda com certa apreensão que, quando chegou a hora de abrir No Caminho de Swann, eu torcia para aquela célebre madalena, encharcada de chá quente, não cair dentro da xícara e se desfazer toda.
“Mas por que ela não se apressa? Por que não se despacha? Por que não deixa de pensar em seu passado e come?” – eu teria perguntado à professora com fervor, se tivesse certeza de não ser sumariamente reprovada.
Se há uma coisa que me irrita profundamente, de fato, e que procuro evitar com o máximo cuidado durante o café-da-manhã, é que o biscoito que tenho em mãos se despedace e caia no leite. Caminho sem volta. E é inegável que agora, toda vez que vejo esse doce amarelo-palha, que não como por despeito, penso em Marcel Proust.
Esta é apenas uma anedota, mas saiba você que são muitos os grandes escritores que colocaram seus protagonistas para provar ou cozinhar seus pratos favoritos. O que me dizem então de explorarmos juntos alguns exemplos retirados da literatura brasileira?

Uma das receitas brasileiras favoritas de Jorge Amado: a moqueca 

Não saberia dizer qual dos dois é o mais famoso: a moqueca ou Jorge Amado. Ambos são nativos da Bahia, sem dúvida, um dos destinos mais populares do país. A moqueca é um prato típico à base de:
  • peixe;
  • azeite de dendê (óleo produzido a partir do fruto da palmeira conhecida como dendezeiro e que, devido aos seus efeitos laxativos, é muitas vezes retirado da receita original);
  • tomates, pimentões e cebolas;
  • leite de coco;
  • coentro e especiarias.

A caçarola onde a moqueca é cozida é a “panela de barro”: no passado, era feita de argila, mas hoje é comercializada também em cerâmica.

Jorge Amado é um escritor nascido no início do século XX, autor dos maiores clássicos da segunda fase do Modernismo no Brasil, entre eles: Capitães de Areia (1937), Gabriela Cravo e Canela (1958), Dona Flor e Seus Dois Maridos (1966). Pois bem, e sabem o que é maneiro entre tal prato e o escritor? Em todos os livros de Jorge Amado fala-se muito sobre a culinária e come-se fartamente, pois através da comida, Jorge Amado compartilha com a gente o seu fascínio por suas raízes baianas.

Dona Flor, por exemplo, tem dois maridos (um morto, Vadinho, e um vivo, o farmacêutico Teodoro, que lhe tomou como esposa assim quando viúva) e uma escola de gastronomia. Folheando as páginas do livro, você vai acabar entre suas panelas a preparar, entre outras especialidades, a moqueca de peixe e camarão.
Fãs do escritor dizem que as receitas brasileiras nos livros de Jorge Amado são tão detalhadas que, seguindo-as ao pé da letra, é muito difícil de cometer erros. Portanto, se vocês sentirem vontade de uma pitada de Brasil mesmo estando longe, Dona Flor será capaz de guiá-los na descoberta das iguarias locais.

O peru de Mário de Andrade

No Brasil, o prato mais natalino, que certamente não pode faltar nas mesas do banquete, é o peru. Existem realmente muitas maneiras de prepará-lo, mas gostaria de falar daquela descrita por Mário de Andrade em seu conto publicado, em 25 de dezembro de 1949, no Jornal da Tarde e intitulado “O peru de Natal“.

Mário de Andrade foi um poeta, musicólogo, escritor e um dos fundadores do modernismo brasileiro, no século XX. Em suma, um intelectual versátil que, em sua época, teve papel fundamental para a formação da identidade artística do país.
Em seu conto, o protagonista Juca decide que, apesar da morte recente de seu pai e do luto que a família ainda carrega, na mesa daquele Natal, certamente não poderia faltar o tradicional peru.

A princípio, horrorizadas com a ideia, as mulheres da casa – a mãe, a tia, a irmã e a namorada Rose – se deixam levar pelo encanto dos cheiros e sabores do cobiçado prato e seus acompanhamentos: farofa seca e farofa gorda.
A farofa é feita da farinha refogada com ingredientes e especiarias, e acompanha bem, mas não somente, as carnes. Ela é preparada geralmente com farinha de mandioca, de origem amazônica base da culinária indígena, mas também pode ser feita com a farinha de milho em flocos. Essa seca, no conto, é refogada apenas na manteiga, enquanto a gorda, que especificamente teria recheado o peru de Juca, é preparada com:

  • farinha de mandioca;
  • ameixas;
  • nozes;
  • cerejas;
  • vísceras de animais (fígado, coração, tutano).

Para garantir que todos se sintam mais felizes e com menos a saudade do falecido, Juca decide comprar muita cerveja. Extremamente gelada. A bebida preferida de mamãe.

A rosquinha de Clarice Lispector

Sem sombra de dúvidas, Clarice Lispector foi uma das mulheres mais fascinantes da literatura brasileira, embora para os gringos seja uma leitura muito difícil: suas obras foram comparadas às de Virginia Woolf e James Joyce.
Em A Hora da Estrela (1977), seu romance de publicação póstuma, a protagonista Macabea é uma jovem muito pobre que acaba de se mudar para o Rio de Janeiro. O pouco dinheiro que ela tem nos bolsos dá para viver somente de cachorro-quente.
Quando Gloria, uma amiga sua (mas nem tão amiga assim, pois decide roubar-lhe o namorado), convida-a para um café e lhe permite comer quantos quitutes quiser, Macabea mal acredita em seus olhos e empanturra-se a ponto de passar mal.

Entre as delícias descritas por Clarice está a famosa rosquinha, com a qual Macabea se lambuza e enche os bolsos. É verdade: ela também carrega um estoque para casa.
A rosquinha é preparada com:

  • farinha de trigo;
  • leite condensado;
  • fermento;
  • ovos;
  • açúcar.

E tudo é frito na frigideira. A receita pode ser personalizada à vontade. O importante é que não se perca a forma característica de uma rosquinha com um buraco no meio.

A cocada de Machado de Assis

Joaquim Maria Machado de Assis é outro grande nome da literatura brasileira. Nascido no Rio de Janeiro, no final do século XIX, em uma família de origens humildes, ele não se abdica de seus estudos e escreve suas duas grandes obras: Memórias Póstumas de Braz Cubas (1881) e Dom Casmurro (1899).
É em Dom Casmurro que o protagonista Bentinho, apaixonado por Capitu, percebe ser correspondido por ela quando decide anunciar que entraria no seminário e ela, embora ávida por doces, sequer percebe o homem que naquele momento passava ao seu lado tentando lhe vender uma cocada. Capitu está triste, na verdade. E Bentinho, que se dá conta disso, compra uma para ela.

A cocada, como o próprio nome sugere, é um doce típico à base de coco. A receita hoje inclui o uso de leite condensado. Certamente, aquela degustada por Bentinho e Capitu não o continha já que na época, o leite condensado era muito caro e difícil de ser encontrado. A original era à base de:

  • rapadura (açúcar de cana solidificado);
  • leite;
  • coco.

O segredo da popularidade desse doce provavelmente está na simplicidade dos poucos ingredientes usados. Parece que Machado de Assis era de fato um fã comilão: a cocada aparece nas páginas de muitas de suas obras-primas.

Você também ama ler e cozinhar? Você se lembra de outros livros onde, entre as páginas, aparecem receitas que deram uma sutil ou explosiva água na boca?

As línguas se aprendem nos livros e à mesa…

 

Artigo originalmente escrito em italiano por VIVIANA VENNERI

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Daniel Zerbetto

Daniel Zerbetto é formado no mundo mágico das Letras & Literaturas. Sua especialização em Artes & Filosofia lhe tirou os pés do chão e abriu as portas da razão e imaginação. Enquanto viagens interplanetárias não são possíveis, ele se contenta em viajar entre os cinco continentes, aprendendo línguas e conhecendo pessoas. Já trabalhou como comissário de vôo e há mais de dez anos se dedica à educação, ministrando aulas de idiomas, literatura, artes, história da música e cinema. Recentemente, deixou sua amada Berlin para aprender italiano na imponente cidade de Turim, mas prometeu voltar em breve.

Daniel Zerbetto é formado no mundo mágico das Letras & Literaturas. Sua especialização em Artes & Filosofia lhe tirou os pés do chão e abriu as portas da razão e imaginação. Enquanto viagens interplanetárias não são possíveis, ele se contenta em viajar entre os cinco continentes, aprendendo línguas e conhecendo pessoas. Já trabalhou como comissário de vôo e há mais de dez anos se dedica à educação, ministrando aulas de idiomas, literatura, artes, história da música e cinema. Recentemente, deixou sua amada Berlin para aprender italiano na imponente cidade de Turim, mas prometeu voltar em breve.