Quando nem uma nem duas línguas são suficientes para se fazer entender, é hora de mergulhar no pitoresco mundo das interlínguas, uma mistura híbrida ou “macarrônica” de dois idiomas que no geral compartilham os mesmos elementos léxicos, gramaticais e sintáticos.
A magia das interlínguas é melhor compreendida em duas situações distintas:
- Quando, como estudante de alguma língua nova, você ainda não domina esse idioma escolhido ou tem pouco conhecimento sobre ele, replicando elementos de sua própria língua materna para completar frases. Pense conosco: Je vais driver, em francês, em vez de Je vais conduire para dizer “eu vou dirigir”. Ou quando você usa “falsos amigos”: Das ist groß, em alemão, para falar em inglês this is disgusting (isso é nojento), embora a expressão literalmente signifique isso é grande.
- Quando falantes de duas populações distintas tentam dialogar em uma língua que misture elementos comuns, a fim de se fazer entender, criar uma sensação de familiaridade ou mesmo estabelecer parcerias comerciais. Apesar de existir centenas de interlínguas no mundo, aqui estão alguns exemplos famosos:
Uma visão geral das chamadas línguas híbridas
Portuñol/Portunhol
Essa é uma interlíngua falada nas regiões fronteiriças da Península Ibérica, ou seja, entre Portugal e Espanha, assim como na América do Sul entre o Brasil e países de língua espanhola, como o Uruguai e o Paraguai. O Uruguai – que, segundo o historiador Norman Berdichevsky, nasceu como um “estado-tampão” entre as duas grandes nações da região, Argentina e Brasil – figura como um bom exemplo aqui. No norte uruguaio, grande parte da população (cerca de 260.000 pessoas) fala português. Tal fluência na língua estrangeira foi e é sobretudo consolidada porque as pessoas naquela área recebem o sinal de emissoras brasileiras de televisão e podem, portanto, assistir a seus programas e novelas. Berdichevsky ainda afirma que o portuñol é uma tentativa dos uruguaios (especialmente das gerações mais jovens) de estabelecer uma identidade nacional própria – que se difere e se liberta da sombra de seus poderosos vizinhos “machistas” e hispano-falantes, os argentinos.
Um dos melhores exemplos do portuñol é o romance Mar Paraguayo, escrito pelo brasileiro Wilson Bueno em uma mistura de espanhol, português, portuñol e guarani (uma língua indígena falada no Paraguai, por exemplo). Alguns termos do portuñol são palavras como camiáu, derivada de camión em espanhol e de caminhão em português, e frases como Dame este biscoito (me dê este biscoito). Em 2015, um grupo de artistas e acadêmicos deu início a uma petição para que a UNESCO reconhecesse o portuñol como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.
Russenorsk/Руссенорск
A chamada russenorsk (ou “russo-norueguês) é uma língua de contato (pidgin language) que não existe mais. Combinando elementos de dois idiomas, ela era falada no Ártico entre a Noruega e a Rússia (como exibido na série “Os Crimes de Fortitude”) durante os séculos XVIII e XIX. Essa interlíngua nasceu à medida que pescadores noruegueses e russos precisavam negociar entre si, de modo que suas formulações basicamente tratavam de pesca, clima e comércio. A influência do russenorsk foi diminuindo quando a fronteira russo-norueguesa, com a independência da Finlândia perante a Rússia, foi derrubada em 1917 e com a formação da União Soviética em 1922.
Runglish/рунглиш
Uma língua macarrônica falada no espaço! No ano 2000, a NASA listou o runglish como um dos idiomas falados entre os tripulantes de língua inglesa e de língua russa a bordo da Expedition One na Estação Espacial Internacional. Além disso, o runglish ganhou popularidade por meio do romance 2010: Uma Odisseia no Espaço 2 do escritor britânico Arthur C. Clarke, no qual uma equipe formada por russos e norte-americanos cria uma campanha intitulada “Stamp out Russlish” para acabar com o tédio. Exemplos daí são: Слайсающий чиз (ou slaysayushiy chiz) para se referir a queijo fatiado e Аисд кофе (ou aisd kofe) para dizer café gelado. De volta à Terra, você ainda pode ouvir um pouco de runglish entre os membros da comunidade russa que reside em Brighton Beach, no condado nova-iorquino de Brooklyn.
Belgrano-Deutsch
Eis uma língua híbrida falada pelos descendentes de imigrantes alemães em Belgrano, um bairro da capital argentina, Buenos Aires. Os teuto-argentinos ou “Deutsch-Argentinier” compõem o quarto maior grupo de imigrantes da Argentina. Infelizmente, porém, sua língua não sobreviveu com o tempo, de maneira que apenas algumas poucas palavras conseguiram permanecer até hoje no vocabulário. Outra língua híbrida similar é o lagunen, um tipo de alemão falado no Lago Llanquihue, no Chile. Exemplos desse idioleto abrangem palavras como lechen (leite), que vem de melken em alemão e de leche em espanhol, ou vacke (vaca), que surgiu de vaca em espanhol e de Kuh em alemão. No que tange a frases, um caso seria Das ist ein asco (isso é nojento).
Entretanto, o belgrano-deutsch não deve ser confundido com o alemañol que é falado por pessoas de língua espanhola que vivem em regiões alemãs. O chamado alemañol inclui termos como la banjof em vez de der Bahnhof (“a estação de trem”, em alemão) assim como sentenças do tipo Voy a la kela (eu vou para o porão) ou Vamos a einkaufar? (vamos às compras?), constituídas de palavras de origem germânica (no caso, kellar para “porão” e einkaufen para “fazer compras”).
Spanglish/Inglañol
O termo – cunhado pela primeira vez pelo jornalista e poeta porto-riquenho Salvador Tió nos anos 1940 – descreve uma língua híbrida falada por norte-americanos naturais do México, em particular os residentes no sul da Califórnia ou em outras comunidades hispânicas situadas em Nova York, Miami e Texas. Embora o spanglish também possa ser ouvido no Panamá e em Porto Rico, não se engane pois há diferenças entre um tipo de espanhol e outro, como o dominicanish (dominicano e inglês), o tex mex (mexicano e inglês) e o cubonix (cubano e inglês). O spanglish, falado supostamente por cerca de 40 milhões de pessoas (quase o mesmo que a população total da Espanha) pode ser muito difícil de ser decifrado por nativos apenas em inglês ou em espanhol.
Alguns exemplos dessa forma de se comunicar se refletem no uso de verbos ingleses com terminações espanholas – por exemplo, parquear (que vem de “to park”) no lugar de estacionar ou rentar (“to rent”) no lugar de alquilar (alugar) – e também na criação de calques como llamar para atras (em referência a “to call back”) em vez de devolver la llamada, o icônico Hasta la vista, baby de Arnold Schwarzenegger ou a seguinte frase maluca: Marla fue a la washateria pero no tenía un daim para estartear la máquina (Marla foi para a lavanderia, mas não tinha uma moeda para ligar a máquina). Louco, não é mesmo?
As línguas híbridas são um fenômeno linguístico fascinante. Se você gostou do tema, você também deveria ler: