“Tá pensando que berimbau é gaita?” – Quando a dublagem de filmes acerta

Como a dublagem pode mudar o nosso imaginário! Joriam Philipe explora as várias facetas da tradução e o que isso significa para nossa cultura.

Se você um dia for a uma festa de dubladores, por favor, feche os olhos.

Rapidinho você vai perceber que o Capitão Planeta está pedindo para Hermione passar o copo com gelo. O Nicholas Cage está contando uma história sobre surfe. Quem é essa pessoa rindo? Não é aquela vilã da Pequena Sereia? Ou da Cinderella? A experiência toda é surreal.

Em algum momento da festa (isso é inevitável), eles vão começar a imitar os personagens. É nessa hora que você percebe que a verdadeira mágica da dublagem de filmes é ouvir o Aladdin falando sobre o mercadão de Madureira.

Pode parecer piada, mas a verdade é que existe um certo poder em encontrar a voz de um personagem e ser capaz de aplicá-la em outros contextos. E não estou falando apenas do tom de voz, mas muito mais da personalidade.
Ali, fora do filme, você finalmente entende todo o carinho e toda a dedicação que foram colocados em cada vírgula de uma dublagem. Quando os personagens não têm mais script, mas continuam conversando e sendo eles mesmos. É mágico! Mas logo vem uma dúvida inevitável: a Elza de verdade não é… a americana?

Ou será que, linha a linha, suspiro por suspiro, uma nova personagem – literalmente versão brasileira – foi construída com tanta autenticidade quanto a original?

Cada palavra carrega mil palavras

A gente não percebe no dia a dia, mas cada palavra do nosso idioma está carregada de pressupostos. Não existe nenhum momento em que isso fica mais evidente do que na tradução.

Um exemplo simples: “I’m hungry” é uma expressão fácil de traduzir do inglês – “estou com fome”.

Já a expressão “I’m starving” começa a complicar a vida. A língua inglesa possui mais de um nível de fome e expressões corretas para cada um deles. No português não é bem assim – então somos obrigados a usar superlativos ou recorrer a frases feitas como “morrendo de fome”.

Mas onde mora a alma do personagem que solta essa frase? Seria uma dondoca de Beverly Hills que não come nada desde o croissant do café da manhã ou um pai somaliano tentando conseguir uma última ração da Cruz Vermelha pra levar pra família?

Uma delicada arte se forma ao redor dessa escolha linguística. Um equilíbrio entre as idiossincrasias das duas expressões transmutadas e o movimento labial dos personagens na tela. Pois é! Não dá pra estender ou encurtar muito o texto, afinal a cena já está pronta e gravada.

Num contexto tão complexo, as equipes de tradução e dublagem precisam trabalhar juntas pra entender a alma de um personagem. Gírias novas e velhas, níveis diversos de formalidade, palavras sem tradução direta – os maiores desafios e também a parte mais bonita dessa arte.

Em outras palavras, o Koenma não fala “tem vezes que eu tenho vontade de te dar uma bifa” porque é isso que o autor original tinha em mente. Tenho certeza que o roteirista da animação Yuyu Hakusho – um dos marcos eternos da dublagem brasileira – nunca ouviu nada parecido com “uma bifa”. O ponto é: esse personagem é brincalhão, agressivo e informal. Muitos outros termos poderiam fechar esse buraco: tapa, soco, tabefe, porrada, cascudo; mas de todos os termos, “bifa” era o mais ressonante.

A versão brasileira desse personagem não precisa nascer de uma tradução ao pé da letra – ela precisa encontrar a energia daquele personagem num outro contexto. Só quando essa voz, essa personalidade for achada, o personagem pode se tornar tão real quanto o original.

Uma trabalheira. Mas o resultado é lindo.

Aprender uma palavra é aprender mil

Estudar um idioma é também estudar um contexto. Não dá pra fugir! Por exemplo: as línguas latinas possuem pronomes femininos e masculinos, já as línguas germânicas possuem esses dois e mais o pronome neutro. Quando você aprende que palavras como “Kind” ( criança em alemão) são de gênero neutro, isso diz um bocado sobre como a cultura enxerga gênero.

A língua japonesa possui três alfabetos distintos que se misturam nas frases. Conforme a cultura foi evoluindo, um dos alfabetos (Katakana) foi, pouco a pouco, sendo reservado para o uso de palavras estrangeiras. Isso revela bastante sobre o caráter aglutinador do japonês, especialmente porque Katakana é considerado cool por lá.

A quantidade de possíveis tipos de pretéritos do português, aliada ao notório e tão-difícil-de-explicar conceito de saudade revelam o caráter nostálgico implícito na língua.

Muitas vezes os conhecimentos são imperceptíveis, mas eles estão lá. Até mesmo por comparação: quem sabe parte da fama da “frieza” alemã não venha simplesmente da ausência dos mecanismos que os brasileiros têm pra lembrar do passado com candura?

Isso aí tá vivo! Tá mexendo, moço!

Idiomas são organismos vivos. Só de usar uma língua, você está contribuindo para esse organismo andar com suas próprias pernas.
É fácil entender isso usando o português como exemplo: digamos que um francês tenha descoberto que a palavra perdão, quando dita educadamente, faz com que as pessoas saiam do seu caminho. É natural pra ele usar uma palavra próxima da equivalente em francês pardon, por isso ele resolve adotar essa palavra no lugar do mais comum com licença.

Só por essa simples adição do termo no dia a dia, seu uso aumenta estatisticamente (e, por consequência, ele corta alguns usos do termo com licença). Talvez alguém ouvindo na rua vá se sentir estimulado a trocar o termo também. Talvez um jornalista ou ator famoso comece a pedir perdão com frequência. Em 100 anos, pode ser que licença se torne uma expressão antiquada e perdão (ou alguma mutação… perdoon? perdz?) tome o seu lugar. Isso não acontece do dia para a noite, mas cada escolha linguística – cada frase pronunciada ou escrita – faz parte do caminho desse ser invisível chamado português.

Talvez você não acredite que um único indivíduo possa ter grande impacto na evolução de uma língua. Mas e se esse sujeito fosse, por exemplo, o tradutor de uma música da Disney? Não seria uma geração inteira influenciada por uma inocente decisão?

Pense comigo: ao pé da letra, a tradução de “Hakuna Matata” seria “sem preocupações pelo resto dos seus dias”, mas as crianças da minha geração ouviram “os seus problemas, você deve esquecer”. Diferente? Sem sombra de dúvida.

Pior? Melhor? Nenhum dos dois. Só diferente, pensado para outro público.

Blábláblá, chega de papo!

Não adianta nada conjecturar e falar e discutir e repensar e gargarejar e não sentir na pele como a coisa funciona. Vamos fazer um pequeno exercício.

Escolha uma personalidade internacional com a qual você se identifique.

Vamos traduzir algo pequeno pra começar: um tuíte!

dublagem de filmes

“Eu estou fazendo uma pesquisa pro meu romance. Se você tem um trabalho que você considera chato em que você senta na frente de um computador; o que você faz o dia todo?”

Essa tradução parece certinha, né? Mas e se eu te dissesse que a voz que esse humano usa para falar com as pessoas na internet não tem nenhuma formalidade? Que seria um absurdo para essa criatura usar o verbo “considerar” no Twitter sem um bom motivo pra isso? Você acreditaria em mim?

“Tô fazendo uma pesquisa pro meu livro. Se você tem um trabalho que você acha chato e que te faz ficar sentado no computador; o que você faz o dia todo?”

Sutil… mas diferente, né? Tipo “Hakuna Matata” (tá bom, mais sutil, ok, ok).

Me fala aqui nos comentários o quão fácil ou difícil foi traduzir – com intenção, com energia, com voz – um tuítezinho. Tô curioso!

Compartilhar: