Como ser uma pessoa bilíngue quase me deixou maluco

Falar uma língua estrangeira nos altera de maneiras que nem percebemos? Estudos mostram que temos diferentes personalidades dependendo do idioma que estamos falando.

Minha professora de inglês do colegial costumava dizer que “aprender um idioma estrangeiro muda você para sempre”. Realmente, ser uma pessoa bilíngue muda suas perspectivas.

Apesar de isso ser uma óbvia tentativa de fazer com que as pessoas gostassem da matéria que ela ensinava, aquela frase fazia sentido para mim, uma pessoa que gostava de citar falas obscuras de “Buffy, a Caça-Vampiros” e que colocava as letras das músicas da Alanis Morissette no mesmo patamar que palavras divinas. Afinal de contas, sem um entendimento básico da língua inglesa, eu não poderia ter feito nada disso e todas aquelas amizades imaginárias nunca teriam florescido.

Então cheguei à fase adulta (acho) e vivenciei as vantagens de falar uma língua estrangeira: dar em cima de homens exóticos (ainda usando “Buffy” como referência, mas… #ForeverAlone) e ser capaz de entender bem melhor as fofocas do escritório.

A divisão do eu virtual

Aprender inglês fez meus hábitos mudarem radicalmente, mas será que eu também havia passado por alguma transformação? Não, até eu me mudar para a Alemanha. Em Berlim eu passei a falar e escrever em inglês dez vezes mais do que eu fazia antes (por que não alemão? culpa dos homens exóticos já citados). Quanto mais eu falava, mais a profecia da minha professora se tornava realidade. Eu não estava apenas mudando, minhas “versões” italiana e inglesa também haviam se transformado em duas pessoas bem diferentes.

Os primeiros sinais dessa metamorfose (ou duplicação) apareceram on-line. Toda a vez que eu me sentava e tentava escrever algo para o meu blog no meu idioma nativo, a escuridão tomava conta das minhas intenções resplandecentes, fazendo surgir poesias emo e pensamentos crepusculares. Eu reli meus posts antigos e me imaginei escrevendo em um porão escuro, bebendo vinho barato e cantando baixinho “I dreamed a dream” de Les Miserables, colocando especial ênfase dramática na parte que diz “minha vida matou o sonho que eu sonhava” (claro que a parte do vinho barato é verdade, a propósito, acabo de encher minha taça).

Já quando escrevo em inglês, a história muda. Eu sinto como se minha mente estivesse cavalgando alpacas, escorregando em arcos-íris, em estado de hiperglicemia após comer um bolo de casamento de seis camadas. Eu não sei o que esse idioma faz comigo, mas eu sei que o leitor casual provavelmente pensa que eu uso cocaína.

Essa divisão de personalidade certamente parece estranha, mas quem não é estranho no mundo virtual? De tempos em tempos, todos olhamos fotos de Mary Berry pensando que elas dariam um bom papel de parede. Nós também procuramos nosso nome no Google para ter certeza de que somos os mais bem-sucedidos entre nossos homônimos e desenvolvemos relacionamentos imaginários com pessoas que encontramos no LinkedIn.

Minha bipolaridade linguística virtual parecia andar perfeitamente bem, até o dia em que percebi que o mundo off-line também havia sido afetado. Ela começou a se manifestar em várias situações sociais, especialmente na mais estressante de todas: a festa.

O estado vegetativo persistente da festa

Se o conceito “alma da festa” tivesse um oposto, ele provavelmente seria um modo bem preciso de descrever meu papel em festas nas quais se fala italiano. Eu me arrasto até o apartamento do anfitrião, geralmente movido pela culpa de não ter comparecido a eventos anteriores. Eu me visto com roupas camufladas para poder me disfarçar entre as plantas e escapar do radar das outras pessoas, sempre tomando cuidado para não fazer contato visual com estranhos, mortalmente calado, a não ser que acabem os salgadinhos e eu tenha que pedir um refil. Eu sou o estado vegetativo persistente da festa e toda palavra em italiano que acidentalmente sai da minha boca parece excessivamente pesada e deslocada.

Estranhamente, o mesmo não acontece em festas na qual o idioma principal é o inglês. Não tem nada a ver com as pessoas ou com minhas habilidades linguísticas. É apenas que eu me sinto mais livre, mais engraçado e mais propenso a me divertir –mesmo sóbrio – quando falo inglês.

“Ou estou possuído pelo demônio ou estou louco”, pensei quando comecei a questionar minha saúde mental. Eu imaginei minhas personalidades divergindo mais e mais com o passar do tempo, até o horrorizante momento em que Spencer Glinston (o nome da minha personalidade inglesa) insistia em colocar abacaxi na pizza, traumatizando meu eu italiano e levando a um colapso mental.

Sanidade recuperada

Por sorte, no meio do meu delírio, eu me deparei com este interessante artigo na revista americana The New Republic. Nas últimas décadas, cientistas pesquisaram se falar várias línguas nos faz intrinsicamente diferentes. No final dos anos 60, Susan Ervin fez um teste com um grupo de mulheres japonesas vivendo nos Estados Unidos, pedindo que respondessem uma série de perguntas em inglês e japonês, com resultados estarrecedores. Quando respondiam em japonês, as mulheres davam respostas mais conservadoras, enquanto as respostas em inglês as faziam parecer uma gangue de motoristas de caminhão anarquistas que jogam coquetéis molotov em carros por diversão. (Atenção: essa interpretação do teste é pessoal e impulsionada por muito vinho barato).

Outros estudos sugerem que as personalidades variam dependendo do idioma usado, mas nós não sabemos o porquê. Seria algo diferente para cada idioma, como o artigo sugere, ou tem mais a ver com as diferentes circunstâncias nas quais essas línguas são usadas? Eu nunca vivi certas situações durante meus 26 anos na Itália. Por exemplo, eu nunca pedi um aumento em italiano; nunca solicitei um cartão de crédito; nunca tive debates sobre manuais de instruções do Ikea ou pedi demissão; nunca pedi desculpas por perder as chaves de alguém e quase matar seus gatos; eu nunca comemorei a vitória de um quiz em um bar e – muito estranho – nunca disse “eu te amo” para ninguém em italiano.

Talvez idiomas não tenham poderes especiais e, no fim das contas, as palavras que conhecemos ou deixamos de conhecer não moldem nossas personalidades. Podemos ter todo o Dicionário Oxford na nossa cabeça, mas é só no momento em que despejamos tudo isso no ouvido de alguém disposto a escutar, reagir e responder que a língua realmente tem impacto em quem somos.

Por Federico Prandi
Ilustração de Eleonora Antonioni

traduzido por Gabriel Mestieri

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