Eu cheguei à aula cedo. Para ser bem honesto, eu não sabia realmente do que se tratava, mas o título tinha me conquistado: “La Découverte de Paris” (A descoberta de Paris). Era minha terceira semana morando na cidade luz e eu estava absolutamente apaixonado. Se a aula fosse sobre história, arquitetura, literatura… não fazia diferença. Estava apostando todas as minhas fichas na descoberta de Paris.
Por sorte era uma aula de francês para estrangeiros.
A professora entra na sala. Alta, carrancuda, sobrancelhas grossas como cabos de aço. O silêncio veio naturalmente. Por um instante, todo mundo se sentiu no jardim de infância.
Ela escreve uma série de frases enigmáticas no quadro negro: tradição e luxo, política e passado. Tenho certa dificuldade em entender tudo, mas acho que esse é o ponto, certo?
Ela propõe uma divisão em grupos. Um dos temas brilha pra mim: “Créateurs et Ailleurs” (criadores e forasteiros). Exatamente como eu me sinto. Eu fundo o grupo como quem funda uma vila. Rapidamente, como mariposas ao redor de uma lâmpada, alguns colegas vêm até mim e o grupo se fecha. Saímos da sala em seguida.
Quando entramos outra vez, uma série de endereços estavam escritos no quadro. A madame, pela primeira vez mostrando emoção, nos diz que não vai ensinar francês para nossas mentes, ah não! Ela vai ensinar francês para os nossos estômagos. É um discurso bizarro, parece que saiu direto de um filme do Monty Python. Estou hipnotizado.
Antes de nos explicar a real tarefa, ela nos faz prometer que não usaremos o Google. Não é um pedido, mas quase uma ameaça. Aterrorizados por aquela mulher, todos concordamos de coração. Ela prossegue.
Cada um daqueles endereços possuía uma importância histórica para o desenvolvimento da cidade. Mais especificamente, todos estavam atrelados a um mesmo grupo de pessoas. Quem eram essas pessoas? Descobrir seria nossa primeira missão.
Meus olhos brilhavam. A faculdade estava deliberadamente me mandando para uma caça ao tesouro.
Desvendando o mapa
Nós quatro nos encontramos perto da estação de metrô. Era o início da primavera e verdadeiras tempestades de pólen faziam nossos olhos lacrimejarem.
Tínhamos um pedaço de papel com alguns nomes de ruas. Logo descobrimos que todos ficavam numa mesma ilha: Île Saint Louis – um pequeno paraíso posh na parte de trás da Notre Dame.
“Bonjour, monsieur ! Bonjour, madame ! On sait que votre appartement est important pour l’histoire de la France. Mais bon, en fait on sait pas pourquoi. Est-ce que vous pouvez nous expliquer?” (Olá, senhor! Olá, senhora! A gente sabe que o seu apartamento é importante para a história da França. Mas, bem, na verdade a gente não sabe a razão. Você pode explicar pra gente?). Essa era nossa frase pronta, direta do forno.
Logo descobrimos que nossa missão não seria moleza: muitas pessoas não estavam em casa. Portas fechadas e interfones mudos.
Alguns endereços (discriminados dos outros) não faziam parte do nosso tema – apenas algumas curiosidades da cidade. Nosso primeiro sucesso foi um desses: vendo uma portaria aberta, entramos em um dos nossos objetivos B. Uma estátua desafiadora nos olhava do fundo de um jardinzinho sem graça. Chegamos perto.
Camille Claudel, amante do escultor Rodin – e a verdadeira artista por trás de muitos trabalhos famosos assinados por ele – morou ali por alguns anos. Nesse prediozinho normal e desinteressante encontramos uma obra que mais merecia estar nos corredores do segundo andar do Louvre.
Isso não tinha cheiro de turismo, nem gosto de aula. Isso era aventura.
Que criadores? Que forasteiros?
Voltando para a ilha semana após uma semana, acabamos juntando as peças desse quebra-cabeças.
Na primeira metade do século XIX, os russos invadiram a Polônia (eu juro que não fiquei maluco, me segue aqui) com muita brutalidade, uma coisa feia. Muitos poloneses, principalmente os mais intelectuais, fugiram do país por medo de perseguição.
E foram morar onde? Em Île Saint Louis.
A cada porta que conseguimos abrir, mais um pedacinho de uma história triste – de uma fuga às pressas, de medo da destruição de Varsóvia. Ao mesmo tempo, ali nessa pequenina ilha, uma oportunidade dourada: os poloneses mais notórios, da ciência às artes, todos a duas quadras de distância.
Um dos nossos endereços estava na verdade coberto de cimento. Uma surpresa! Mas sempre com uma história por trás. Foi ali que Marie Curie, mãe da radioatividade, passou anos morando e fazendo seus experimentos. Ouch!
Num outro endereço B, uma estranha igreja. A princípio, nada de especial, mas prestando atenção – símbolos maçônicos espalhados por todo o lado, misturados com as típicas pintas de Jesus e dos santos. Hum, esquisito.
O caldo estava começando a engrossar. Eu estava chegando perto do meu tesouro.
Estudo Revolucionário – Op. 10
Minha avó é uma pianista (eu sei que eu pareço ir para as tangentes mais doidas, mas segue aqui comigo) conhecida mundialmente no meio da música erudita. Por acaso, o momento da virada mais importante da sua carreira foi um intercâmbio de estudos em Paris. Por mais acaso ainda, ela passou a maior parte da vida se especializando em um compositor específico: o gênio polonês, Chopin.
Eu tenho memórias dos meus 4 anos, agachado embaixo do então gigantesco piano de cauda da minha avó enquanto ela trovoava uma valsa ou uma peça épica. Claro, a mente de uma criança tão nova não consegue entender o quão especial isso é – eu achava que todos os meus amigos já tinham deitado no maquinário de um instrumento e visto os movimentos da música logo acima.
Essas melodias persistem na minha mente até hoje.
Foi uma linda surpresa descobrir que um dos meus endereços enigmáticos tinha sido o apartamento onde Chopin morou durante metade da sua vida, exilado de sua amada pátria. Hoje em dia, o local se tornou um museu em homenagem ao próprio e a outros artistas poloneses.
Ouso dizer que ninguém no humilde museu nunca tinha visto alguém tão empolgado. Eu tirava fotos, fazia mil perguntas, voltava toda semana. De um ponto em diante, eles me conheciam pelo nome, me deixavam entrar de graça. A Bibliothèque Polonaise (biblioteca polonesa) era um projeto de paixão – e ver a minha energia era tudo o que eles queriam.
Um dia, tomado por um momento de insanidade, eu fiz uma pergunta. Essa pergunta, como profetizado pela professora, veio mais do meu estômago do que do meu cérebro:
“Est-ce que moi… est-ce que moi je peux jouer une note au piano?” (Será que eu posso tocar uma nota no piano?).
Um instrumento que em tese tinha pertencido ao próprio Chopin por um tempo.
A guia ficou confusa com meu pedido. Olhou em volta, talvez mentalmente pedindo ajuda. Mas, claro, o micromuseu não precisava de mais de um funcionário por vez. Ela voltou os olhos pra mim, dessa vez com uma expressão mais divertida:
“Bah… oui, mais juste une note” (Sim, mas só uma nota). Música para os meus ouvidos, literalmente.
A aula de francês me deu de presente uma nota Sol tocada no clavicórdio (uma espécie de piano ancião) do próprio Chopin. Hoje em dia, esse instrumento nem está mais no museu, o que só prova que eu estava no lugar certo, na hora certa.
Destino ou não, uma das minhas músicas preferidas do Chopin se chama Estudo Revolucionário.
Os tatara-idiomas
É difícil para o brasileiro entender que o nosso país é uma criança. Nossa cultura, um bebê. Se nós já encontramos relatos históricos em cada esquina do Rio de Janeiro, Recife, Salvador… imagina Paris! Imagina o Cairo! Imagina Pequim!
Um idioma ancestral é uma porta de entrada pra toda uma imensa cultura, construída tijolo a tijolo ao longo de séculos.
Pra mim as cidades vibram como música, como se tivessem um acorde próprio. Às vezes, o seu acorde interno vibra bem com um lugar, mas dissona de outro. Raramente você vai encontrar aquela cidade – um lugar que vibra com as mesmas notas que as suas.
Quando você encontrar – se você encontrar essa cidade – talvez você aprenda sobre alquimia, talvez convidem você para chás em castelos e festas no subterrâneo. Talvez você toque uma nota no piano do Chopin.
Mas onde você estiver, olhe em volta. Procure as histórias e os porquês. Converse com as pessoas. Aprenda qual é aquele acorde e um dia você vai poder adicioná-lo a uma música totalmente sua.
Merci, Paris.