Histórias de intercâmbio em Paris: de empresários coreanos bêbados ao choque cultural

Você está fazendo algo que é bizarro para um estrangeiro no seu intercâmbio?
menino sacada

Algumas cidades são interessantes justamente porque atraem gente do mundo inteiro. Nova Iorque, Berlim, Shangai são lugares de intensa troca. Claro que de vez em quando esse intercâmbio vem com atrito – não estou nem falando de violência, mas de alguém de repente baforar um cigarro na sua cara ou conversar com você com a boca cheia de omelete. E, quem sabe você não está fazendo algo que é bizarro para um estrangeiro?

Pois é. Senta que lá vem história!

Meu intercâmbio em Paris e algumas amizades inusitadas

Eu estava morando em Paris há alguns meses já. Na época, eu saía com uma menina brasileira chamada Bia. Não era nada demais, só um rolo, mas a gente se via com certa frequência porque estudávamos na mesma faculdade.

Bia é uma pessoa, que eu diria, peculiar. Ela me contou como gostava de fazer amizade com gente que ninguém fazia — ela entendia o processo cultural das pessoas e conseguia aceitar algumas situações esquisitas. Ela é o tipo de pessoa que, ao ver alguém cuspindo no chão do restaurante, cuspiria também, ora bolas!

Volta e meia a gente almoçava juntos no sábado, e o Taekwondo dela era perto do meu apartamento (já contei que ela era faixa preta em Taekwondo? Eu disse peculiar…), e muitas vezes ela arrastava um ou outro amigo lutador para comer conosco.

Kim, o amigo coreano

Certo sábado, um amigo novo apareceu — vamos chamá-lo de Kim (por motivos que mais adiante ficarão evidentes). Tinha algo bem singular no jeito como ele se mexia, isso mesmo antes de ele falar a primeira palavra. Eu o cumprimentei e perguntei de onde ele era: Coreia! Comentei com ele da minha paixão por um jogo de dança coreano que consumiu minha pré-adolescência, e disse que desde então tinha muito interesse pela cultura coreana.

Os olhos do menino brilharam como dois sóis no vácuo!

T’aimes bien la culture coréenne?” (Você gosta da cultura coreana?) — ele me perguntou, incrédulo. O que aconteceu depois disso é o tipo de situação incrível que orbitava em volta da Bia.

O cara começou a recitar as dinastias coreanas, uma a uma, explicando quais reis caiam e quais subiam ao poder. Ele contou das revoluções, das derrotas, das conquistas bélicas, das mudanças constitucionais. Ele era uma máquina de falar, não deixando nenhum espaço para comentários, talvez nem mesmo para respirar.

Eu estava interessado. Sem ironias, sem exagero, eu sou um nerd de história e aquilo era ouro. Mas a situação toda era estranha — um almoço tinha se tornado uma aula magna onde o humano mais atento do mundo só captaria um terço, tal era a velocidade de fala e conhecimento detalhado do menino. Eu e Bia, embasbacados e sem acreditar, observamos o relato histórico por mais de uma hora. Depois da Segunda Guerra Mundial, ele se desculpou e disse que precisava ir.

Corta. Outro dia. Um mês e meio depois.

Soju, empresários coreanos e uma foto para recordar

Eu e Bia estávamos passeando perto da Torre Eiffel (é lindo morar em Paris) sem muitos planos ou destino — eis que o telefone dela toca, era o Kim! Ele tinha prometido apresentar para ela o soju, uma espécie de saquê coreano. Ele disse que estava num bar com amigos do trabalho e perguntou se ela não gostaria de se juntar a eles.

Ela disse que sim e perguntou se podia me chamar também. “Claro!” — disse ele.

Mal sabia eu.

Chegamos ao tal lugar. Não era um bar, era um restaurante coreano tradicional. Daqueles bem com cara de que meus 23 anos não conseguiriam bancar. Entramos e encontramos Kim com os tais colegas, eram três.

Kim se levanta, faz um gesto para que sentemos e começa a fazer introduções. Aparentemente quem estava lá eram: o chefe do Kim, o chefe do chefe do Kim e o chefe do chefe do chefe do Kim. Esse último foi anunciado como um senhor feudal, com direito aos nomes das diversas companhias que ele comandava e diversos cargos passados. A formalidade era tanta que eu e Bia ficamos petrificados.

Os três chefes insistiram que precisavam apresentar a culinária coreana para nós — pedindo literalmente todo o menu. Literalmente. Cada. Prato. Da. Casa.

A comida começou a chegar e o papo foi para um lugar muito estranho. Os três chefes comentavam com a Bia coisas como:

“Que prazer é finalmente conhecer você!”

“Ah, o Kim comentou mesmo que você era bonita.”

“Nossa! Também é muito inteligente!”

Enquanto isso eu estava sendo sumariamente ignorado.

Eu não sou uma pessoa tímida, pelo contrário. Sou bem daqueles que fala demais. Muitas vezes eu nem entendo quando alguém me critica. Mas aquilo era um pouco demais. Essa menina podia não ser minha namorada nem nada sério, mas assim mesmo eu estava sem jeito. Com cada uma dessas interações estranhas, minha sensação de “o que é que eu estou fazendo aqui?” crescia vulcanicamente dentro de mim.

Bia, rainha e soberana do climão, só respondia aos três homens casualmente, enquanto Kim sorria largamente.

Eu fiz o meu melhor para acessar minha memória e puxar todas as informações que eu podia ter sobre o Kim. Alguma coisa não estava batendo bem. Numa outra oportunidade, perguntei para Bia em português:

“Você tem alguma coisa com esse cara?”

“Nada. Ele é casado, tem duas filhas na Coreia.”

“Que diabos está acontecendo?”

“Eu não faço ideia.”

O assunto principal da noite era cultura coreana. Os quatro homens faziam questão de nos ensinar todo tipo de formalidade e ritual. Eventualmente era o momento do soju, o tal do saquê coreano.

O chefe (do chefe, o do meio) começou a explicar como segurar a garrafa e quem devia ser servido primeiro, vários detalhes. Num certo ponto, ele explicou uma coisa que me marcou: se alguém servir você e você virar o seu copo, aquela pessoa precisa virar também.

Uma coisa que eu aprendi com meus amigos nisseis (descendentes de japoneses) no Rio de Janeiro é que muitos asiáticos não produzem uma enzima específica e por isso eles são muito facilmente arrebatados pelo álcool. Quando menos misturado o sangue, menos chances de a enzima existir.

Uma informação de ouro.

Todos foram servidos, todos provaram. Muito bem, muito bom. Eu viro meu copo! Todos riem, é parte da experiência. Kim me serve um novo copo. Eu viro o novo copo.

Uma informação importante para a compreensão plena dessa história é que uma garrafa de vinho sensacional na Paris de 2012 custava cerca de 3,50 €. Na época eu bebia muito, eu bebia bem. Uma garrafa inteira de vinho só começava e me deixar no torpor. Eu era osso duro de roer.

Os coreanos começaram e se revezar pra me servir. Eu virava um copinho a cada 5-10 minutos. Eles começaram a ficar tensos, mas depois de toda a explicação da pompa cultural, eles não podiam voltar atrás com o ritual proposto.

Todo mundo começou a ficar muito bêbado muito rápido. Eu comecei a ser incluído nas conversas. Eles começaram a falar mal da Coreia. Diversos empregos internacionais foram oferecidos para nós.

Kim parecia transtornado, a situação tinha fugido totalmente do controle dele, era o caos total. O restaurante fechou, o grão mestre chefe das mil companhias apontou para o boteco da esquina e disse que devíamos ir pra lá e que a conta era dele.

Eu não lembro de chegar em casa.

Mas quando abri minha câmera no dia seguinte, eu abri um sorriso e soube que não tinha sido um sonho de uma noite de verão:

joriam e coreanos
Joriam, o autor, e seus amigos coreanos bêbados.

Essa é uma das maiores joias do intercâmbio — esbarrar com uma cultura tão fora do seu universo que todas as interações precisam ser revisitadas.

Anos depois desse evento eu ainda me pergunto: será que eles perceberam o meu desconforto? Será que a leitura de expressões faciais funcionam diferente na Coreia? Será que eu mesmo já não coloquei alguém numa situação assim sem querer?

A chave é simplesmente perguntar. Não adianta aplicar a sua cultura como se ela fosse a única — talvez ela até vá contra a cultura da pessoa sentada ao seu lado no almoço. Das baforadas de cigarro na cara até pessoas simplesmente ajudando você a carregar sofás até o quinto andar, o “normal” é fluido, volátil. Vale a pena experimentar e não assumir muita coisa: pergunte tudo!

E então eu pergunto a você uma outra vez: quem sabe você não está fazendo algo que é bizarro para alguém estrangeiro?

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