Sair do país é um sonho cada vez mais comum em tempos sombrios. Ainda mais trabalhar no exterior. Mais mais mais ainda para abrir uma empresa de entretenimento como a que eu abri: um estúdio de jogos.
Euros, yens, dólares. Exportar para Austrália, para Costa do Marfim, para Singapura. O sonho virou plano, o plano virou dia a dia. Mas muita coisa teve que ser aprendida até o momento de ir no cartório registrar o meu “CNPJ” alien.
Nessa série de dois (dois? Quem sabe mais) artigos, eu vou dividir algumas das experiências culturais que eu vivi fazendo esse plano louco de morar fora acontecer. Nem tudo aqui deve ser tratado como “ah, é assim que é lá fora” — afinal eu sou só uma pessoa em uma cidade abrindo uma empresa. Um carioca tentando domar Berlim.
De qualquer forma, acho que esses relatos podem ser uma boa preparação psicológica pra quem pensa em desbravar uma nova mata mercadológica por aí.
Um jogo… de papel?
Mercado é uma coisa muito doida e caótica. O de jogos não é exceção.
Exemplo: o Brasil é um dos países que mais consome jogos no mundo, mas nem está perto de ser um dos grandes produtores. Só de saber essas pinceladas grossas, muitos desafios e oportunidades já aparecem para as mentes mais afiadas.
Aqui na Alemanha, eu encontrei um contexto muito diferente: o país não é lá dos que mais consomem jogos digitais. Também não produzem tanta coisa assim, embora Berlim especificamente seja um polo digital.
Sabe o que se produz e se consome muito aqui? Jogos de tabuleiro.
Isso, você leu certo. Na era da inteligência artificial, dos robôs sorridentes e Google, eu acabei no país que revolucionou o entretenimento de papelão e mostrou para o mundo que Banco Imobiliário na real é meio chato.
O que eu fiz com esse contexto esquisito? Abracei avidamente.
O primeiro jogo lançado pela minha empresa foi um jogo de cartas focado justamente em quem não é gamer (quem não está acostumado com joysticks e com o serviço on-line Steam). Meu jogo é a desculpa perfeita para largar as telas, esquecer as notificações e ter uma troca realmente humana por algumas horas.
Velocidade tartaruga
Uma coisa ficou clara desde o comecinho dessa jornada foi que comprar, vender, contratar, assinar — tudo é lento.
No Brasil, eu também tinha muitas questões com a lentidão, mas na grande maioria dos casos a lentidão burocrática de prefeituras e bancos. As políticas internas de empresas que simplesmente botam você na geladeira por 15 dias são uma pedra que felizmente saiu do meu sapato: aqui o governo acredita em e-mails e o banco é nada mais que um aplicativo no meu celular.
A lentidão vem de um outro lugar: ninguém está com pressa.
Os projetos não são “pra amanhã”, o nível de ansiedade é baixo. Você manda uma proposta, a pessoa lê no mesmo dia, mas, sem ironia alguma, resolve passar uns bons 10 dias pensando a respeito.
Não tenho nada senão algumas teorias sobre o imediatismo e instinto de sobrevivência de culturas colonizadas, ou hipóteses sobre a sensação de permanência e segurança de uma cultura milenar. Tudo o que eu sei é que isso acontece.
Também não sei se isso parece bom ou ruim para você que agora lê este texto, mas para mim é bem claro: é bom e ruim. As suas demandas demoram, suas aprovações demoram, os pagamentos demoram múltiplas semanas. Ninguém parece preocupado. Ao mesmo tempo, as pessoas tomam o tempo para que as coisas funcionem. Não tem ninguém berrando com você no telefone. No fim, trabalhar no exterior acaba tendo seus prós… e contras.
As palavras que a gente não tem
É engraçado como o processo linguístico de um país afeta a maneira como as pessoas enxergam absolutamente tudo.
A língua alemã é famosa pelos seus aglomerados de palavras, formando vocábulos gigantescos e impronunciáveis para quem não é fluente (muitas vezes até para quem é). No português, isso acontece ao longo de anos de iteração: o processo que transformou “boca” e “aberto” em “boquiaberto”, por exemplo. No alemão você pode aplicar essa estrutura mesmo que tenha acabado de aprender as palavras.
Mas abrir uma empresa na Alemanha mostra que essa lógica aditiva afeta muito mais que apenas umas palavras gigantes. Aqui, quando você vai abrir a sua pessoa jurídica, você tem tantas opções de combinações entre diferentes tipos de denominações e sistemas que a vida fica complicada.
Imagina isso: você pode abrir um conglomerado — uma espécie de pizza à francesa empresarial. Dentro das entidades que participam desse conglomerado, você pode colocar você como uma pessoa, você como uma empresa pessoal e uma empresa cujo único dono é você mesmo. O Estado tem regras diferentes para todas as possibilidades e você, em casa e só, conta como um coletivo. Os nomes dessas empresas (o que seria o nosso “ltda”) ficam tão grandes que parecem até equações da minha prova de física da oitava série.
E por falar em nomes…
O “cara/moça dos impostos”
Eu tentei. Eu juro que tentei. Passei meses tentando desembaralhar todos os termos da burocracia alemã. Hoje, olhando pra trás, me sinto um grande idiota: imagina um gringo tentando desvendar o excelentíssimo vernáculo jurídico tupiniquim. Seria vexatório.
No fim das contas a melhor coisa que eu fiz foi achar um “cara dos impostos”. Eu estou aqui (meio brincando, meio falando sério) cunhando esse termo simplesmente pelo fato de não termos as palavras para descrever esse anjo do céu.
No Brasil nós usamos o termo “contador” — que, convenhamos, faz mais do que contar — mas ele é especialmente insuficiente para descrever o alemão Steuerberater. O sistema de taxas e impostos daqui é um eterno e excruciante labirinto e essa criatura se especializa em não morrer lá dentro.
Um pequeno exemplo: um dia eu estava tentando aprender sobre o imposto de renda. Perguntei sobre um dos itens e a resposta foi “se você usa um carro da empresa, aqui você indica quantos quilômetros foram rodados para o seu uso pessoal e quantos para os fins da empresa, baseado nisso você paga uma quantia de imposto diferente”.
Pois é.
O cliché do detalhismo e do caráter analítico do alemão não está aí por acaso. Cada centavo, cada parafuso, cada segundo — tudo conta. Por sorte tem gente que faz a tradução.
Ainda por vir
Na segunda parte dessa jornada, eu vou falar sobre a cultura ao redor dos vistos, sobre os eventos incríveis que eu tenho acesso por estar em uma grande capital global, sobre minha escolha de publicar um jogo em inglês mesmo morando na Alemanha e sobre o processo natural de internacionalização que um empresário — mesmo pequeno — acaba passando depois que o primeiro passo é dado.